14 de maio de 2015

A Av. Gago Coutinho entre ficção e realidade

 

Desconheço desde quando recebeu a avenida a designação de Almirante Gago Coutinho. Ao longo da minha infância, a família referia-se-lhe como Av. do Aeroporto. Esses tempos já distantes, afastam-se da imaginação presente no conto “A Inaudita Guerra da Av. Gago Coutinho”, de Mário de Carvalho, mas os episódios  dos meus tempos de criança não deixaram de surpreender quando, mais tarde, me foram lembrados.

No conto de Mário de Carvalho, a musa Clio, responsável pela tessitura da História, adormece, trocando os fios da tapeçaria , o que gera total confusão de épocas e de acontecimentos. A troca provocada pelo sono, confunde situações separadas por cerca de 800 anos e, como consequência, uma multidão de invasores berberes, azenegues e árabes do século XII misturam-se, na Gago Coutinho, com automobilistas dos anos 80 do século XX, gerando-se um caos tal que, após pedras e flechas lançadas, é necessária a intervenção policial. Para quem não conhece o divertido texto, termina o mesmo com o acordar da musa dorminhoca que, não conseguindo reverter na totalidade os acontecimentos, borrifa os condutores e policiais com água do rio do esquecimento, o Letes, a fim de atenuar o transtorno. Fora do conflito armado, bem como dos “borrifos amnésicos” da tal água mitológica, afirmaria,  com um sorriso, que a ficção é, muitas vezes, mais divertida do que a realidade.


 
 
Nos idos 50 do passado século, a Av. do Aeroporto não vivia a guerra entre mouros e cristãos, mas um tipo de guerrilha caseira, a transtornar quotidianos dos moradores das espaçosas vivendas, muitas delas hoje destinadas a serviços e organizações. Os meus avós viviam do lado onde hoje existe o Parque Gomes Ferreira, confinando a parte de trás das casas com um bairro degradado, de gente com vidas de miséria. Na ausência de alarmes, muitas das moradias, nos altos muros a confinar com as barracas, eram protegidas com os hostis cacos de vidro, fixados no topo, a proteger de invasões.

O meu avô materno trabalhava, grande parte do ano, na Póvoa de Varzim, tendo ainda de viajar com regularidade. Em casa ficavam, por motivos de calendário escolar e de cuidados domésticos, a minha avó, uma tia de idade avançada, a minha mãe e as suas irmãs – um espaço quase sempre habitado por um agregado exclusivamente feminino.

No terreno a confinar com a porta de serviço, existia um pomar apelativo, com frutos doces e sumarentos. Os sobreviventes do bairro degradado, percebendo que em casa só se encontravam mulheres, protegiam as pernas com câmaras de ar vazias e à prova de cacos de vidro e, de sacos de serapilheira em riste, subiam às árvores com todo o vagar para escolherem o que lhes agradava, numa calma indescritível, como se estivessem às compras na praça. A minha avó, indignada, gritava-lhes que se fossem embora, ameaçando telefonar para a esquadra mais próxima. Muitas foram as ocasiões em que, em tom de comando , lhe disseram que fosse coser meias, que era o que qualquer mulher que se preze devia fazer…

Imagem 1: a musa Clio, pintura de Pierre Mignard, século XVII

Imagem 2: Av. Almirante Gago Coutinho em Panoramio, foto de Reinhard 1000 .

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