23 de agosto de 2011
Crepúsculo em Alfama
(fotografia: crepúsculo em Alfama; autor: Stoessel Henriques Alves)
Paira pelas vielas o odor acre a tinto da pipa, enquanto o sol crepuscular polvilha a calçada de uma luminosidade impossível de transpor para qualquer película.
Passando a porta da mercearia de bairro, fica na memória olfactiva um perfume a pêssegos rosa. Da janelinha de rés-do-chão de caixilhos remendados ouve-se através da voz roufenha de um transistor, um fado a contar histórias de vinganças e amores infelizes.
Vislumbra-se através do engordurado vidro da tasca, negras frigideiras de ferro pendentes do tecto. O proprietário, a fazer tempo para os costumeiros do jantar, assenta os cotovelos na mesa cambada espicaçando, distraído, escombros de uns ovos com chouriço.
Aproxima-se um rapazito de calções remendados a apregoar os vespertinos do dia. Ninguém parece prestar-lhe atenção. Abancadas na soleira carcomida, duas mulheres sem idade conversam numa atenção falsamente alheada do espaço envolvente como se tentassem, em desespero de vésperas apocalípticas, enterrar vivos e desenterrar finados.
O enorme gato malhado espreguiça-se na varandinha de sardinheiras sequiosas, olhando atentamente a chegada de uma qualquer andorinha vinda das bandas do Tejo. Todos estão de tal modo cientes de si que a observadora poderia ter presenciado o quadro num qualquer museu de uma cidade irreal virada ao rio.
Para quando o romance? Não percebo a hesitação...
ResponderEliminarBeijinho, Felicidade, your're so kind :0)
ResponderEliminar... o post nasceu de memórias dos tempos em que subia o bairro para assistir aos (poucos) filmes de Elia Kazan no ar.co, ali à R. de Santiago, mas o mérito mesmo é da fotografia e do seu autor.
Belo texto, teresa!
ResponderEliminarMais um!
Parabéns.
Quase senti o cheiro dos ovos com chouriço.
Embora frequentadora ocasional do estabelecimento, garanto que os ovos eram gostosos, José Quintela Soares:)
ResponderEliminarEu também senti isso, deu-me vontade enorme de comer ovos mexidos com um certo chouriço que, imagine-se´, só se encontra em Portugal...
ResponderEliminarAi... assim não dá... começo a sentir-me exilada... :D:D
Um belíssimo texto, Teresa! Sim, a foto também é bonita, mas cada coisa no seu sítio!!
Ainda bem que gostaram do texto, Luísa. Isto da ficção tem que se lhe diga, pois nela há sempre algo de vivência... Não quero provocar com os ovos deliciosos num local que certamente hoje jé estará desactivado:)
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