23 de abril de 2006

Paulo Mendes Campos, by appointment

(clicar para aumentar: retirada  daqui: http://www.cultura.mg.gov.br
Agora há pouco eu lia uma entrevista do António Lobo Antunes no Estadão, onde ele dizia, entre coisas mais interessantes, que gostava dos cronistas brasileiros, especialmente do "injustamente desconhecido" Paulo Mendes Campos. Do advérbio não falo nada, porque na literatura a justiça, como as cores do céu, oscila muito; mas o adjetivo, ora, esse é injusto se se pensa no Brasil: Paulo Mendes Campos é ainda muito lido e muito gostado. Daí pensei que Antunes se referia a Portugal, onde ele, certamente, será mesmo quase anônimo. Então tomo a liberdade de vir aqui vos deixar uma crônica dele. Esta fala do Botafogo Futebol e Regatas, clube de seu coração, cujas cores são o branco e o preto e cujo símbolo é um escudo negro com uma estrela branca ao centro - daí ser conhecido como o clube da "estrela solitária". Começo com ela porque só mesmo um cronista brasileiro para falar assim de um time de futebol.

O BOTAFOGO E EU

Que partilhamos defeitos e qualidades comuns, não há dúvida. Nos meus torneios, quando mais preciso manter os números do placar, bobeio num lance, faço gol contra, comprometo, tal qual o Botafogo, uma difícil campanha.
A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa.
Sou preto e branco também, quero dizer, me destorço para pinçar nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco.
Sou um menino de rua perdido na dramaticidade existencial da poesia; pois o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol.
Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho.
O Botafogo tem uma sede, mas esqueceu a vida social; também eu só abro os meus salões e os meus jardins à noite silenciosa.
O Botafogo é de futebol e regatas; também eu sou de bola e de penosas travessias aquáticas.
O Botafogo é um clube com temperamento amadorístico, mas forçado, a fim de não ser engolido pelas feras, a profissionalizar-se ao máximo; também sou cem por cento um coração amador, compelido a viver a troco de soldo.
Reagimos ambos quando menos se espera; forra-nos, sem dúvida, um estofo neurótico. Se a vida fosse lógica, o Botafogo deixaria de levar o futebol a sério, fechando suas portas; eu, se a vida fosse lógica, deixaria de levar o mundo a sério, fechando os meus olhos.
O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela Federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral.
O Botafogo pratica em geral o 4-3-3; como eu, que me distribuo assim em campo: no arco, as mãos, feitas para proteger minha porta; na parede defensiva, meus braços, meu peito aberto, meus joelhos e meus pés; no miolo apoiador, trabalho com os pulmões e o fígado; vou à ofensiva com a cabeça, a loucura e o coração. Falta um, Zagalo. Em mim, essa energia sem colocação definida é a alma, indo e vindo, indistinta, atônita, sarrafeada, desmilingüindo-se até o minuto final.
O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu, e rasgar as vestes com as unhas do remorso; como eu.
O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino; eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus.
O Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático; tem que ser como eu, dramaticamente inventado na hora.
Miguel Ângelo é botafogo, Leonardo é flamengo, Rafael é fluminense; Stendhal é botafogo, Balzac é flamengo, Flaubert é fluminense; Bach é botafogo, Beethoven é flamengo, Mozart é fluminense. Sem desfazer dos outros, é com eles que eu fico, Miguel, Henrique, João Sebastião. Dostoiévski é botafogo, Tolstói é flamengo (na literatura russa não há fluminense); Baudelaire é fluminense, Verlaine é flamengo, Rimbaud é botafogo; Camões não é vasco, é flamengo, Garrett é fluminense, Fernando Pessoa é botafogo. Sim, Machado de Assis é fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras!
O Botafogo é paixão, é Brasil, é confusão; Campos Paulo Mendes é paixão, Brasil, confusão.
O Botafogo conquistou um campeonato esmagando inesperadamente o Fluminense de 6 a 2; uma vez, enfrentei um dragão enorme e entrei no castelo encantado.
O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; o Botafogo é meio boêmio, como eu; o Botafogo sem Garrincha seria menos Botafogo, como eu; o Botafogo tem um pé em Minas Gerais, como eu; o Botafogo tem um possesso, como eu; o Botafogo é mais surpreendente do que conseqüente, como eu; ultimamente, o Botafogo anda cheio de cobras e lagartos, como eu.
O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas-secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais Botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também.
Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura) uma estrela solitária.

Notas para ajudar os amigos portugueses:

1) "cidadela" é o nome que os antigos cronistas esportivos davam, pseudopoeticamente, à meta;
2) 4-3-3 é um sistema tático: quatro zagueiros, três meias, três atacantes. O Brasil campeão em 1958 o inventou - Zagalo, a "energia sem colocação definida", foi o primeiro ponta recuado da história;
3) Laranjeiras é o bairro carioca onde está a sede do Fluminense FC, que é o time dos cariocas ricos; o Flamengo é o time mais popular; o Vasco da Gama, o time dos imigrantes portugueses; e o Botafogo, depreende-se, o dos românticos e dos lunáticos incuráveis. Discordo do autor e acho que há, sim, Fluminense na literuatura russa, e logo dois: Tchékhov e Nabokov;
4) Mané Garrincha foi o nome maior do Botafogo, seguido de perto pelo seu compadre, Nilton Santos;
5) o "possesso" que o Botafogo tem (a crônica é dos anos 60) é o Amarildo.

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