20 de agosto de 2010

O mimo



Era um dia de jantar como outro qualquer. Apeteceu-nos uma cervejaria e lá fomos, a uma das veteranas de Alvalade. Quando nos sentámos, houve qualquer descarga eléctrica no ar. Mas estávamos mais preocupadas com a ementa, nem atentámos. De repente ouço uma voz ríspida "Só no restaurante é que conseguimos falar!"  Vemos um casal completamente absorvidos numa discussão. Aliás só ela é que fala. Ele grunhe baixinho. Intercepto um olhar lateral duma senhora de outra mesa. Arregala os olhos incrédula e trocamos sinais e sorrisos de cumplicidade. O estranho é que a refeição decorre, mas ninguém conversa, todos ouvimos a conversa do lado. Basicamente a questão é de que o senhor deixou de a mimar e não quer sair de casa. Ela sente-se nova e quer experimentar coisas. Ele só quer ver futebol e sair sozinho. Outro aspecto relevante é o aborrecimento. Mas o verdadeiramente estranho deste litígio é que se traduz por  uma melopeia.de desespero  contido. Estamos juntos há trinta anos, diz ela. Ele nem se percebe o que responde.
Quando pagam e se vão embora, todos os olhares os seguem. Ninguém imaginaria sem ter ouvido, que aquele casal com um ar tão calmo, foi capaz de tanta agressividade em público E que aquela senhora com ar tão amazónico sofre por ter falta de mimos. A vizinha do lado quando sai despede-se e a minha amiga diz "Lá estás tu, como de costume, a dar conversa a toda a gente no restaurante" Confesso que sim.

Fotografia de Martin Parr, Magnum

2 comentários:

  1. T. ‘lá estás tu, como costume, a dar conversa a toda a gente…’, ainda bem que o fazes.
    Com a vizinha da mesa do lado bastou uma troca de olhar para 'conversarem' tudo. A nós dás-nos a teu olhar sensível sobre uma triste história de ‘um par de viúvos de pessoa viva’, através de um texto muito bem escrito e muito simples.
    Gostei mesmo muito, T.
    Se não for pedir muito, dá-nos mais uns textos assim!

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