31 de julho de 2010
Paraíso III - A caneta
Os dias começavam-me bem sempre que ouvia, ainda ao longe, vindo da porta da Paraíso, o pregão:
- É só uma nota!
Apressava um pouco o passo e crescia o entusiasmo, como respondendo antecipadamente à continuação do pregão:
- Aproximem-se meu povo! É novidade! É só uma nota!
Não sei bem porquê mas devia ser Domingo de manhã.
A minha curiosidade nesse dia advinha de verificar se a “novidade” anunciada não o era, pois ansiava pela repetição da “novidade” do mês passado, a caneta de tinta permanente com enchimento por ‘patilha’ lateral.
- É produto da maior necessidade! É qualidade garantida! E só paga uma nota destas (e exibia a nota na mão levantada).
Sinceramente já não me lembro de que nota se tratava em concreto. Havia notas de 20$00, 50$00 e 100$00 como possíveis para este tipo de negócio. [Excluo assim as notas de 500$00 e 1 000$00, mais usadas para compras maiores. Já é tão difícil encontrar a tecla do escudos, mas dá gosto voltar a escrever $s].
A nota de 20$00 parece-me ser, para as minhas possibilidades da altura, 1972 ou 1973, a mais viável, contudo penso que seria pouco para pagar aquela hipótese de compra. A nota de 100$00, pelo contrário, estava muito acima das minhas posses, não vendo qualquer viabilidade de dispor de tão avultada maquia, para esta compra ou para qualquer outra. Assim, analisando 4 décadas depois, a nota de 50$00 parece-me ser a mais provável.
Debaixo da pala de esplanada da Pastelaria Paraíso [não me recordo de ver a esplanada alguma vez montada] rapidamente se juntava, em semicírculo à volta do vendedor, um grupo de curiosos, constituído só por homens. Não sabia, à época, o porquê das mulheres não se juntarem também. As mulheres aproximavam-se, olhavam, matavam a curiosidade e afastavam-se.
Não tenho a imagem completa de como era a banca do vendedor, mas três coisas são certas: A banca tinhas pés de tesoura, o que lhe permitia abrir e fechar a banca; tinha uma mala onde guardava o stock e alguns apetrechos; em cima, a fazer de tampo, colocava um tabuleiro forrado a feltro verde, onde exponha os produtos a vender.
Havia, igualmente, três apetrechos fundamentais e desses lembro-me bem: Um pano de pó cor-de-laranja, onde limpava os excessos de tinta; um caderno pautado tamanho almaço, onde demonstrava o tipo de escrita das canetas e esferográficas; e um insólito pedaço de madeira, onde espetava as canetas pelo bico, num gesto em tudo idêntico ao do lançamento de um dardo ao alvo.
- Acontece deixarmos cair uma caneta ao chão. Se estiver fechada nenhuma tem problema, mas se estiver aberta … Reparem!
E lá espetava mais uma caneta no pedaço de madeira. E continuava a sua lição:
- Esta não é uma Parker, mas mesmo depois de lhe espetarmos o bico continua a escrever.
E demonstrava-lo passeando a caneta pelas folhas do caderno pautado:
- É só uma nota de cinquenta. E não fica por aqui! Quem apresentar uma nota destas (mostrava a nota) leva a caneta e também esta magnifica esferográfica, em aço, que escreve a preto, vermelho, azul e verde. Basta escolher com que cor quer escrever!
Ia manobrando os selectores da esferográfica e demonstrando a escrita no caderno. Eram umas esferográficas muito em voga na época, com quatro cargas e quatro cursores de selecção. Actuando sobre um fazia recolher a carga anterior e surgia o bico da cor seleccionada:
-Mas leva também esta e mais esta e, como hoje estou um mãos-largas, leva ainda mais esta.
Elevava um pouco a mão tendo a caneta e as esferográficas espetadas entre os dedos, não deixando de exibir na outra mão a nota de cinquenta.
- É só uma nota e leva isto tudo! Leva este magnífico conjunto (…).
O dia começara mesmo bem.
O vendedor tinha reaparecido com a caneta que eu tanto queria e tinha no bolso a tão apregoada nota de cinquenta escudos.
A minha ânsia ia acalmar, mas o meu entusiasmo ia em crescendo.
- Quero uma!
Agora era eu que exibia a nota de cinquenta escudos.
- Aqui tem o conjunto completo. Reparem que para encher a caneta é só fazer assim!
E num gesto de simpatia encheu-me a caneta de tinta. Mergulhou a canta no tinteiro, manobrou a ‘patilha’ lateral para cima e para baixo, limpou a caneta no pano de pó cor-de-laranja, fechou a caneta e deu-ma.
Como era linda a minha caneta.
[Estas canetas tinham uma pequena alavanca lateral que movia o êmbolo de enchimento do depósito de tinta da caneta].
Sabia que os meus irmãos Zé e João já estavam a tomar a café. Com o ar próprio de recente proprietário de uma caneta entrei triunfante na Paraíso:
- Vejam! Acabei de comprar. É mesmo muito porreira a escrever. E vejam como é para encher. É muito fácil, basta mexer esta alavanca aqui!
Ainda de pé, fiz o movimento explicativo de como se enchia a caneta.
Bom, assim que levantei a alavanca, pelo bico espirrou um jacto de tinta que foi directo ao homem que estava sentado de costas na mesa ao lado, a ler o Diário de Notícias, que ficou todo borrifado de tinta azul.
Penso que por ter escutado a minha alegria, atirando um olhar por cima do ombro, só refilou:
- Para a próxima tenha mais cuidado.
Voltou a folha do jornal e continuou a ler.
Incrédulos, em silêncio os três entreolhámo-nos e voltámos a focar os olhos no homem sentado na mesa do lado. O sobretudo creme que vestia estava manchado em toda a sua dimensão, tal como se fosse a pele de um dálmata.
Voltámo-nos a entreolhar e, sem mais palavras, de mansinho e muito apressados saímos da Paraíso.
28 maravilhosos segundos de exerto de um filme super8, caseiro e particular, dos anos 70
Belíssimo texto. E acho que o Júlio Amorim vai adorar rever o Paraíso perdido:)
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