21 de julho de 2010
Depoimentos do exterior: ser professora ao longo de 40 anos
40 anos mais tarde, ensinar continua demasiado apelativo para pensar na reforma…
Emily Farrell
Professora na Strat Haven High School, Delaware.
Em 1970 levantava-me diariamente às 5h rumo à primeira escola onde trabalhei no Michigan. A localidade, Hartland, tinha uma única rua. Havia 3 turnos horários e eu leccionava desde o início da manhã até ao meio-dia. Horário de 6 turmas com quinze minutos de intervalo entre cada uma. O ordenado era na época satisfatório: 8.000 dólares anuais. Os alunos não possuíam livros e eu ensinava Inglês…
Um ano mais tarde, fui colocada num verdadeiro paraíso, a Nether Providence High School. Não faltavam por lá livros. Os pais valorizavam hábitos de leitura.
Os anos 60 tinham chegado ao fim, mas uma certa cultura ‘hippie’ vigorava na escola... e não me refiro ao fascínio pelos romances de Herman Hesse, mas sim ao consumo de marijuana.
No início de 70, esta escola tinha um ‘campus’, podendo os estudantes sair para o almoço. As saídas originavam problemas. Na época, um professor podia questionar um aluno sobre o olhar vidrado ou o cambalear. Hoje não. Perguntem a um jovem se está ‘pedrado’ e sujeitam-se a um processo…
Apesar da liberdade, que razões encontrariam os adolescentes para sair do ‘campus’? No local existia uma área para fumadores a fim de se acabar com o fumo nas casas de banho ou em restantes espaços fechados.
Agora poucos estudantes fumam, as instalações sanitárias são áreas despoluídas e os pavilhões têm as portas fechadas à chave fora do período das aulas. Os visitantes têm de se identificar para lhes ser autorizado o acesso e qualquer um apanhado a fumar dentro de muros – jovens ou adultos – acaba no gabinete do director, sendo-lhe aplicada uma multa dissuasora.
Consumo de drogas? Temos pessoal de apoio, psicólogos e assistentes sociais que auxiliam/alertam os prevaricadores. Torna-se mais difícil frequentar a escola sob efeito de substâncias ilícitas.
Quando comecei a leccionar, os pais trabalhavam e as mães, muitas com consideráveis habilitações académicas, ficavam em casa, o que trazia vantagens e desvantagens. Uma mulher cuja carreira exclusiva é a maternidade, tanto pode ser a melhor advogada de um professor como se pode converter numa fera, queixando-se ao director, ao ministério ou a Deus, caso Ele tenha disponibilidade para lhe responder. Pode atacar violentamente ao primeiro sinal de uma positiva mais baixa…
Hoje todos têm de trabalhar, encontrando-se os pais exaustos para – pelo menos presencialmente - apresentarem queixas.
Bem-vindos ao e-mail. À semelhança de alguns adolescentes que divulgam fotos no Facebook após consumo desenfreado de álcool e livres de consequências, os pais podem enviar mensagens de correio electrónico não raramente impulsivas. Os professores devem responder-lhes cautelosamente: encarregados de educação não têm tempo para se queixarem na escola, mas o processo judicial é prática corrente…
Outra mudança é o mundo da educação especial. Há alguns anos, a nossa escola tinha dois professores de educação especial, o distrito tem hoje tantos professores de educação especial como de Matemática. Vinte por cento dos nossos alunos encontram-se sinalizados. O que era considerado “pequeno obstáculo” na geração anterior é actualmente rotulado como “problema focalizado”. Uma criança menos concentrada é “incapaz de processar”. Estudantes outrora encarados rudes ou agressivos, a necessitar de penalização, precisam hoje de “reforços emocionais”.
Ciente de me encontrar a ironizar sobre o novo mundo das etiquetas, não duvido que o nosso entendimento sobre alguns problemas subtis de aprendizagem terá dado lugar a uma panóplia de actuações alicerçadas no facilitismo.
Quando comecei a profissão, as maiores distracções domésticas eram a tv e o telefone. Confiscar, na aula, um bilhete de namorados, não era complicado como actualmente. Existem os telemóveis, excelente apelo para se ignorar o trabalho escolar. E que o professor se livre de tentar ler as sms quando apreende um destes aparelhos. É ilegal. Deixei de reparar nas fotos enviadas, mostrando grandes planos (muito detalhados) de jovens em beijos cinematográficos... Já estou curada.
Associem ainda os telemóveis às fraudes escolares: durante um teste de soletrar (sim, ainda existem), reparei num rapaz com o telemóvel ligado. Estaria a receber uma mensagem do pai, tal como me informou, ou a utilizar o seu dicionário online? Adivinhem…
Sim, o mundo mudou para esta professora de 62 anos que pensa na reforma, mas não consegue largar a escola enquanto ainda gosta do que faz. Os meus alunos alegram-me todos os dias, parecendo apreciar o que lhes ensino.
Em 2010 acordo às 6h para a aula de escrita criativa com início às 7.30. Ensino 3 diferentes cursos por semestre e a duração de cada sessão é de 80 minutos. Os estudantes começam por ligar os laptops para construção de poemas destinados ao concurso de escrita. Às 15.30 chego a casa , ficando a aguardar os textos feitos na aula para ,logo de seguida, os enviar para a Califórnia. Enquanto espero, preparo um mail dirigido ao director de uma universidade por causa de um candidato. Nessa mesma noite, recebo uma mensagem electrónica bastante motivadora, enviada por um pai e auxilio um aluno a concluir ensaios académicos 'na hora'.
Sem dúvida que o ensino mudou.
Tradução livre do Philadelphia Inquirer de 6/6/2010
Foto de Emily Farrell , legenda: «Emily no ano lectivo de 74/75 antes do e-mail, dos sms e dos “problemas focalizados” ».
(agradecimentos ao V pelo recorte enviado)
Acabei de ler o texto e fico a olhar para ele pensando...
ResponderEliminarsabe bem, no início atribulado de uma interrupção lectiva (vulgo férias) reflectir sobre uma vida inteira e encontrar pontos comuns, outros discordantes, mas sentir que se está "acompanhado"!!!!
Ainda só tenho 36 anos de carreira...e algum do antigo fascínio pela vontade de ensinar...mas,nos dias que correm, questiono-me muitas vezes: até quando?
A minha relação com o ensino, enquanto docente, pautou-se (pauta-se) com o dito "profissional". O enquadramento é outro, mas, para quem vê o ensino como um processo, acaba sempre por ficar tocado por quem, como aqui dito, desenvolve uma vida inteira ao serviço dos outros. Devo dizer que, se sou quem sou, se vejo no "servir" um acto que engrandece e que nos faz ser gente, o devo, em grande parte, a uma professora que tive, decorriam os primeiros anos de sessenta e que, sendo absolutamente dedicada ao que fazia, nos ensinou o valor das palavras: partilha, humanidade, solidariedade ... etc. Com ela e pela sua mão visitei as aldeias SOS, entre outros lugares de "crescer"... o seu nome? porque não dizer. Não tem ainda nome em rua, mas tem e terá sempre na rua, avenida, de meu coração. Joaquina Rosa Barradas Conchinhas. E, no nome da "rosa", celebro todos/as que, tal como esta, foram e são referencias de boas-práticas.
ResponderEliminarGostei de aqui estar
Um bem-haja
Mel
Cara Avelaneira,
ResponderEliminarTambém encontrei alguns pontos comuns no depoimento, embora haja nele situações específicas do país...
´
A sua experiência já é muito considerável (eu tenho 27 anos de carreira, sendo que 4 foram passados longe e a desempenhar uma actividade não docente, embora nesse período tenha sentido a falta da sala de aulas). Os tempos são outros, embora o que desgaste, a título pessoal, seja a carga (cargos) burocrática que a mim se cola qual 'araldite', pois os meus pares pedagógicos depositam em mim (sei lá eu porquê) algumas expectativas nas quais pouco me revejo, penso que devido a algum 'mau feitio' (qb contido) e a 'não mandar dizer nada por ninguém', sempre que necessário (os receios, sejam eles quais forem, parecem-me muitas vezes algo infundados).
Quanto a interrupção lectiva, penso ser a de Verão (em que agora se começa a respirar fundo) legitimamente designada por "férias".
Umas boas férias para si:)
O meu mestre Ivor Goodson diz que, por esse mundo fora, se corre o risco de se 'matarem' vocações (e aguento facilmente críticas de quem não concorda com o conceito de vocação), ficando uma profissão descaracterizada a cumprir como quem cumpre qualquer outra, de 'ponto picado'...
Há pouco tempo, encontrando-se naquele país, foi surpreendido no local onde se hospedava por um telefonema do ministro da educação da China a perguntar-lhe que conselho lhe daria sobre a melhoria do ensino por aquelas paragens... (ele realçou a importância da nossa profissão e de sermos devidamente auscultados)...
http://www.ivorgoodson.com/s-index
Importante depoimento o seu, Mel.
ResponderEliminarPenso que educar passa essencialmente pela cidadania (vivida e não decretada por normativos, pois em texto e projectos educativos não lhe faltam referências por essa Europa fora).
... E quando são os próprios alunos a tomarem decisões espontâneas (crescer em autonomia também passa por aí), apetece logo destacar uma turma de Teatro nos únicos 2 anos em que leccionei essa disciplina. Os jovens optaram, em vez de apresentar as peças a toda a escola, por fazê-lo num centro de idosos e, no ano seguinte, numa instituição de crianças.
Estas coisas ficam na memória e são alguns dos 'rebuçados' que recebemos (para além de quando os encontrarmos mais tarde com sucesso nos estudos, embora o que se lhes siga seja, cada vez mais, uma incógnita).
Um belo post e comentários à altura:)
ResponderEliminarGostei do post e do Blogue! Parabéns!
ResponderEliminarGostei muito do texto e traduzi-o com muito gosto, T:)
ResponderEliminar... e ao 'Diferente somos todos nós' um agradecimento em nome dos diversos contribuidores:)
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