26 de novembro de 2009

O mundo às avessas ou de viagem com mestre Gil

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De acordo com consciente opção de encarar o mundo, as coisas não podem ser classificadas em divisão dual, tal a fotografia e o seu negativo, ficou a ideia mais uma vez confirmada após a representação desta manhã. Será, a título pessoal, a obra mais vista em palco: em primeiro lugar, por motivos profissionais (os miúdos estudam-na e entendem-na com outro entusiasmo após a ela terem assistido) e, em segundo, por tanto apreciar o seu autor. Homem ainda marcado por aquilo que muitos designaram como «as trevas da Idade Média» - as classificações deterministas são sempre redutoras-, o escritor é ainda hoje lembrado, cinco séculos decorridos.
Gil Vicente não ostentaria certamente nos tempos que correm o dístico de «politicamente correcto» e, por isso mesmo, terá ficado para a História pelos melhores motivos.
Quando se recorre ao lugar-comum de cada vez estar tudo pior - a crise, senhores, a crise!-, de não existir uma ética, de serem os de visibilidade pública aqueles que piores exemplos dão, etc., etc., etc… ao assistir a peças de mestre Gil ou a percorrer alguns dos seus textos menos divulgados, acabo sempre por concluir que alguns dislates – muitos, é certo – sempre existiram e são indissociáveis - tal como o efeito cola de contacto – da natureza humana. Apesar de nunca ter gostado da expressão «todos os seres humanos têm um preço» (confesso ainda acreditar que alguns não cabem neste rol, e pronto, já escrevi e não apago, embora já há muito que não escreva ao Pai Natal… ), nunca deixo de esboçar um sorriso quando observo, em texto tão distante no tempo, a condenação dos tiranos detentores do poder, de alguns – atenção que referi ‘alguns’ – oficiais de justiça subornáveis a troco de favorecimentos materiais, do comerciante desonesto, da mulher que desvia as meninas para a vida (tudo menos) fácil a troco de enganos ou do frade mundano a frequentar as «discotecas» da época e a banquetear-se nas festanças da corte. Sorrio ainda mais com o tópico do «mundo às avessas», apresentado pela presença em palco de um doente do foro psiquiátrico - na época chamavam-lhe «o parvo» que etimologicamente significava «pequeno de espírito»- , sendo esta – opinião pessoal – a personagem centralizadora, a única capaz de demonstrar uma visão lúcida deste «mundinho» que nos rodeia.
Incomoda ter lido em diversos estudiosos que seria certamente o lugar de privilégio na corte a causa de Gil Vicente criticar confortavelmente e sem rodeios, prefiro acreditar ter sido o mestre (gostaria de o tratar simplesmente por Gil) um exemplo de homem com coluna vertebral, como hoje se diz.
Sem pretender apresentar um post moralista (coisa que detesto), a reflexão surgiu após o enésimo visionamento da peça .
Após ter mentalmente comparado múltiplas encenações, a proposta de hoje, levada a cena pelo grupo de teatro «O Sonho» é apelativa por, antes de tudo o resto, respeitar a lição do autor no que de mais significativo pretende transmitir a todos os que se encontram na predisposição de manter «olhos e ouvidos bem abertos».

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