6 de março de 2009

Olhando a brancura do papel

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(Fernando Pessoa aos 10 anos de idade)

Arte poética: designação atribuída ao conceito de poesia ou, melhor ainda, a textos nos quais os seus criadores tentam explicar a génese da criação literária. Não se limitando o poema a um conjunto de versos e existindo manchas gráficas (uma aparente prosa) a preencherem, na quase totalidade, a folha outrora em branco que são, indiscutivelmente, exemplos legítimos de texto poético, tive a enorme ousadia de reflectir sobre o tema da criação literária, refiro o termo ousadia, dado tudo quanto possa ser referido sobre criatividade artística (seja ela a escrita , a música ou as artes plásticas) acabar sempre por se revestir de carácter lacunar. Recuando no tempo, recordo depoimentos de escritores em periódicos sobre este tema. Como, infelizmente, não guardei alguns desses recortes, na ausência de provas documentais, passarei a referir de memória, duas das “confissões” para mim mais marcantes.
A escritora Agustia Bessa-Luís afirmou há cerca de vinte anos, em entrevista , consistir o processo de criação literária em algo de grande rigor, concretizável através de um estrito cumprimento de horário. Sempre que se encontrava a compor um romance, a actividade exigia-lhe o isolamento em espaço próprio e o respeito por um horário “das 9 às 17”.
Curiosamente e em época próxima à da entrevista da escritora, um outro romancista, António Lobo Antunes, hoje prestes a retirar-se da actividade da escrita, confessava a produtividade pessoal em horários que atravessavam a noite, acabando o trabalho a olhar, através da janela , o nascer do dia. Já de madrugada, olhava o cinzeiro cheio, o copo vazio e chegavam então o cansaço e a hora do repouso.
Para além das condições de escrita, consistindo o isolamento (e o silêncio) num factor imprescindível, atrai ainda a explicação para o momento inexplicável – passo a antítese - em que tudo se revela na folha em branco (ou monitor) . Importante será ainda a criação do mito do escritor-demiurgo, embora hoje se ponha em causa o êxtase que terá conduzido Caeiro à escrita incessante de poemas, quando se encontrava encostado a uma cómoda. No entanto, poderei afirmar que o processo terá muito de inexplicável, súbito e aparentemente mecânico conduzindo, com frequência, ao emergir de palavras/sensações encarceradas até ao momento da passagem à folha em branco. O momento posterior, o do trabalho de jardinagem pertencerá, em modesta opinião, a detalhes estritamente estéticos a não menosprezar.
Segue um exemplo interessante de Arte Poética escolhido, para além do gosto pessoal, por não se tratar dos clássicos (o autor escreve igualmente livros para a juventude):

Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.

Álvaro Magalhães

2 comentários:

  1. recomendo este site, quanto a boa poesia.

    http://strawsea.blogspot.com

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  2. Grata pela referência que irei consultar com (e em) tempo.

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