23 de fevereiro de 2009
Blyton, Rowling ou a literatura juvenil através das gerações
Não devemos subestimar o fenómeno Harry Potter. Trata-se, sem dúvida, de um acontecimento editorial sem precedentes: 7 milhões de exemplares vendidos mundialmente num só dia, aquando da sua publicação em língua inglesa na passada Primavera. Centenas de milhar de exemplares foram ainda vendidos em França logo após tradução e lançamento nas livrarias. E, do outro lado da Mancha, uma autora cujas receitas excedem largamente as da monarca britânica!
Não se trata aqui em exclusivo do factor comercial e estaríamos errados se restringíssemos o fenómeno à consequência de uma pesada e eficaz máquina publicitária. Estes factores não esgotam a explicação de uma adesão extraordinária às aventuras de um adolescente no mundo da feitiçaria se pensarmos que 7 em 10 jovens entre os 11 e os 14 anos leram, pelo menos, um livro de Harry Potter.
Cada volume tem, no mínimo, 450 páginas e a última publicação 700, o que significa, em termos de volume, o dobro de um romance de Zola! Os professores de Francês desdobram-se em testemunhos: Harry Potter cativa os jovens mais renitentes, aqueles que se recusam a abrir seja que livro for. E, uma vez iniciada a leitura, o livro não é largado… fenómeno raro quando sabemos que, em cada 10 obras requisitadas por jovens em bibliotecas e centros de documentação mais de 7 não são lidas até ao final.
Eis o que nos deveria conduzir a uma séria reflexão a fim de serem revistos os clichés com que habitualmente funcionamos pois – com toda a franqueza – entre Bibi Fricotin ou mesmo o Clube dos 5, lidos por jovens de 12 anos há 40 ou 50 anos- e o Harry Potter – que hoje lêem- o número de leitores aumentou consideravelmente! A senhora Rowling não será certamente Homero; a magia de que fala não terá o alcance universal da Demanda do Santo Graal; as feiticeiras de Poudlard não conseguirão rivalizar com as de Shakespeare nem as aventuras do jovem Harry possuirão a profundidade psicológica das do aluno Toerless… Será ainda opinião unânime encontrarem-se bem escritas as aventuras de Potter, conduzindo a uma séria reflexão sobre a paternidade, os ritos iniciáticos de entrada na adolescência, o nascimento do sentimento amor.
São textos que associam o imaginário ao real, permitindo aos leitores o acesso ao simbólico, função essencial ou ainda condição de acesso à verdadeira cultura.
Apoiemo-nos neste fenómeno como denúncia e recusa da mediocridade, da vulgaridade e do disparate das “rádios jovens” ou das emissões televisivas promiscuamente oferecidas com o exclusivo intuito da conquista de audiências infanto-juvenis. O público –e os jovens em particular – não é refractário à inteligência. Hoje, mais do que nunca, é nela que devemos apostar.
Philippe Merieu, “Pottermania” in La Vie, 20 de Outubro de 2005
(tradução livre para este post)
Boa reflexão!
ResponderEliminarConheci este senhor na semana passada, numa conferência, e estou a descobrir um mundo de textos que me surpreendem pela positiva.
ResponderEliminarE o curioso, é que por cá também vejo muita miudagem renitente à leitura a devorar os Harry Potter:)
O que é dito neste texto é verdade... mas não toda a verdade. Continua a existir uma larga franja de jovens que não leram nem lerão nada pelo simples facto de não saberem ler, e isto no sentido que transcende o mero papaguear da sucessão de caracteres numa página. Esses nunca tiveram nem nunca terão hipótese alguma. É a aposta mais difícil, e aquela em que terá que se investir, sob pena de continuarmos a ter hordas de selvagens ao nosso lado.
ResponderEliminarABS,
ResponderEliminarUm texto de opinião nunca poderá dizer “toda a verdade”, ainda mais tratando-se de uma crónica, sob o risco de não ser lido e de não conseguir sustentar até ao fim uma argumentação lógica, sob risco de cair na dispersão, sob o risco de querer abranger tudo . Meirieu tem centenas de linhas dedicadas aos jovens que não conseguem ler, só que não cabem no post.
Quanto ao facto de jovens não lerem, como é afirmado no comentário, pergunto: que jovens (os nacionais?) e por que motivo não lêem (deficiência, politicas educativas? Falta de vocação de alguns professores?).
Ao longo de 25 anos de profissão, os únicos alunos que tive que não conseguiam ler tinham diagnóstico de deficiência mental e eram atirados – como previsto por lei – para um grupo sem défice cognitivo: falo especialmente do meu espaço de trabalho nos últimos vinte anos, a poucos quilómetros de Lisboa, com sérios problemas sociais onde a única refeição completa, em significativo número de casos, é tomada no refeitório escolar.
No ano passado fui recebendo, ao longo do ano, três emigrantes. O último, vindo do Chile ( o jovem Byron), chegou à minha turma a um mês do final , ele não lia nem acompanhava a aula nem que eu fizesse o pino para o motivar, os colegas tinham um exame nacional e a aposta era nos bons resultados da prova. Acabei por dar ao miúdo chileno um livro de leitura/análise em espanhol para que ele se mantivesse vivo… surrealista? Talvez, mas há que trazer alguma cor ao cinzentismo de quem perde implacavelmente as raízes.
Penso que quem se encontra de fora desconhece realidades como estas. Alguns miúdos caem na escola sem que haja um núcleo que os integre , pois a lei , a organização do horário docente e alguma falta de sensibilidade de certos gestores potencialmente desejosos de agradar à tutela antes de tudo o resto, o não permitem… Será que são esses os que não lêem?
Quanto aos “selvagens” não sei se serão os que têm dificuldades de leitura e não estou a ser provocadora. Basta passar por certos locais à noite, digamos, a entrada de um determinado megaespaço nocturno próximo do rio, digamos que o Clube F (um exemplo presenciado há dias) e frequentado unicamente pelos teens e “beber” o ambiente enquanto estes aguardam, em amontoado caótico, pelo momento de lhes abrirem a porta tendo alguns, não poucos, garrafas de “mistura” dentro de sacos de supermercado, manifestando-se aos gritos e utilizando uma comunicação preenchida, em 80% do discurso, com 2 palavras óbvias “c…pip! E f… pip””. Serão estes miúdos os responsáveis por terem este conceito de diversão? Saberão ler? Serão selvagens?
Trata-se de uma reflexão presenciada e vivida nos locais sem intuitos de provocação, mas de gerar inquietação, sem dúvida. Ainda espero vir a conseguir escrever sobre tudo isto, se a Musa e a lucidez (essa em primeiro lugar) mo vierem a permitir.
Teresa,
ResponderEliminarEstamos a dizer a mesma coisa. Só que eu usei menos palavras. Conheço bem estes miúdos, mas do seu contexto social e familiar. Enquanto esse contexto não for drasticamente modificado eles não têm hipótese alguma. E irão reproduzir-se tanto biológica como socialmente, geração atrás de geração. E já conheço várias gerações sucessivas desta roda. Raros, muito raros, lhe conseguem escapar.É só isso.
Aí estamos de acordo, sabe-se que as gerações reproduzem gestos e que se não se ousar- o que pouco tenho visto suceder - assistiremos a um perpétuo efeito-dominó.
ResponderEliminarCaso as minhas palavras nem sempre transmitam o que pretendo, quero deixar bem claro que tenho o machado de guerra bem enterrado e o cachimbo da paz há muito aceso...Ugh! risos (já que tudo começou com a literatura juvenil)