É fácil demonizar as grandes superfícies e cantar laudas às pequenas livrarias de bairro, mercearias, comércio de proximidade e afins. Os que lutaram contra a revolução industrial fizeram algo parecido. E todos lavram no mesmo erro: o do que "antigamente é que era bom".
É mentira. Antigamente era pior, muitíssimo pior. Tudo era pior. Tudo, repito. Desafio alguém a mostrar-me um exemplo que seja de que, nesse antigamente arcadiano as coisas eram melhor. Não eram. Nós é que temos dificuldade em nos adaptarmos à evolução da espécie humana, feita de avanços e recuos, claro, mas tendencialmente avançando.
Basta ler um pouco de história, e nem sequer é preciso ir muito longe. Morria-se mais, vivia-se menos, tinha-se tudo menos, e por aí fora. O mundo era uma esterqueira incomparavelmente mais miserável que a esterqueira que continua a ser. Sempre se idealizaram "tempos antigos" em que as coisas eram melhores, que nisso não mudámos mesmo - basta lembrar as gravuras setecentistas, a ópera barroca (cantada na penumbra com a malta a catar os piolhos, os fungos e a sífilis) os banquetes reais do século XIX (com a malta a morrer de tifóide ou cólera a seguir) e por aí adiante.
Salazar sabia bem como fazer render esta nostalgia, com as suas imagens da casinha portuguesa a que o trabalhador, com o suor do rosto, regressava ao fim do dia, encontrando a mulher a fazer o jantar, a filha a brincar com bonecas ou a fazer lavores e o filho a estudar as letras, que isto de ler era coisa de homens. Tal como, aliás, as livrarias de bairro que me recordo de frequentar: aquilo era só homens, que as senhoras trabalhavam, quando muito, ao balcão das papelarias, trabalho honesto para mulheres honradas.
A Byblos morreu. Tenho, sinceramente, pena. Espero que montem coisa melhor, mais moderna, com mais tecnologia, mais avançada ainda, onde eu possa chegar facilmente. Até lá vivam a internet e a FNAC e a Amazon, que me permitem proezas intelectuais impensáveis há vinte e cinco anos, quando passava tardes inteiras encafuado em bibliotecas a lamber papel, uma ou duas semanas por vezes para dali extrair dez linhas de informação útil.
O problema das nossas referências do antigamente é que não têm o cheiro a merda e a morte que é face incontornável da espécie humana. Como alguém dizia, a guerra só tem música nos filmes. E o passado que idealizamos é acompanhado da música que, nesses tempos, quase ninguém ouviu - mas ouvimo-la nós, hoje.
Abençoado presente, que é nele que me encontro vivo. Tudo o resto é nostalgia romântica, boa para noites de fado e becos sem saída.
Gostei muito deste teu post.
ResponderEliminarCada qual gostará do que lhe apetece. Sempre achei a Byblos pouco simpática. Prefiro mil vezes a Amazon e os alfarrabistas. A Fnac está fracota. Adorei as livrarias de Xabregas. E agora vou trabalhar.
ResponderEliminarCom o devido respeito e sentindo por motivos pragmáticos (e mui pessoais) o encerramento deste espaço (já o referi no post anterior), nunca consegui - desde que me conheço - encarar o mundo sob uma perspectiva dicotómica: bom/mau; aromático/mal-cheiroso; bonito/feio; etc.
ResponderEliminarPelo exposto, lamento que um espaço com contributos a dar no incentivo à leitura tivesse sido encerrado. Por outro lado, o passado e o presente têm coisas mais e menos positivas, ou seja, nem tudo era "lixeira a céu aberto" e nem tudo são vantagens. Isto é uma opinião pessoal que, como qualquer outra, vale o que vale e certamente não será objecto de referendo rementendo-se a sua autora à sua humilde insignificância (como a de qualquer ser humano ante a infinitude do universo)
"Last but not least": em muitos aspectos ainda somos- e felizmente, parece-me - filhos da Revolução francesa nos ideias de liberdade/igualdade/fraternidade (actualmente traduzida, esta última, por solidariedade)
Abençoados os meus avós e pais (e muitos outros que os antecederam) que tantos e tão bons contributos deram para podermos ter melhor presente e futuro.
ResponderEliminarHá, no meu presente, uma riqueza e multiplicidade de heranças, assumidas quer na forma material quer ao nível de valores éticos que perduram e perdurarão.
Para com alguns antepassados sinto uma imensa gratidão por este presente mais rico e confortável.
Não houvesse este passado e eu teria de começar tudo do ZERO.
Respondendo com mais tranquilidade, apesar da ventoinha do pc estar paralisada: ninguém questiona a alegria de viver o presente. As memórias enriquecem-no e tornam-no melhor.
ResponderEliminarTive a sorte de desde miúda frequentar livrarias de todo o tipo. E acho a figura do livreiro como conselheiro ou encaminhador de leitura muito reconfortante. A Byblos como diz uma amiga minha, era um Jumbo de livros, ainda por cima caros por comparação. Não me alegro ou me entristece com a perca: era um negócio.
Por estarmos vivos, querido Azinho, é que temos o imenso privilégio de acariciarmos o que passou. Essa sensação transmite-nos as primeiras aprendizagens, recordações de pessoas que amámos e em visão prospectiva o nosso caminho ou dos nossos antes de nós.
E é isto. A Teresa e a Rosarinho disseram-no muito bem.
Metido que andou em nostalgias e becos sem saída – convidaram-no para uma comemoração caseira dos 40 anos do chamado Álbum Branco dos Beatles, ele que nem sequer é um beatleliano, é mais moody blies, mas gosta de convívios e conversa – só agora leu o post de ABS.
ResponderEliminarFoi reler o que escrevera sobre a “Byblos” e, honestamente, não vê o que possa ter desencadeado tanto azedume. Manifestou apenas o gosto em comprar livros em pequenas livrarias, ao mesmo tempo que manifestou pouca simpatia por travestis de empresários. Admite que talvez se tenha explicado mal, pede desculpas desde já, mas são coisas que estão sempre a acontecer a quem da escrita, prosa medíocre, é certo, faz gosto e não profissão. Obviamente nada tem contra o progresso, o mundo pula e avança, apenas pretende que, como qualquer outro cidadão, tenha o direito de comprar os livros onde lhe dá gosto fazê-lo.
Vem de um tempo em que comprava livros na “Clássica Editora” nos Restauradores, entre o Bar dos Piratas, que ainda lá está, e o antigo Cinema Éden que agora é um Hotel e a Loja do Cidadão. O livreiro, o Sr. Carvalho, fazia-lhe um desconto automático de 10% e mais: guardava-lhe os livros que ele, com um “feeling” de profissional, admitia que iam ser retirados do mercado pela PIDE. Curiosamente, passados alguns anos depois do 25 de Abril, veio a saber que o Sr. Carvalho, não sendo um salazarista, era um homem de direita. Mas colocava a sua profissão de livreiro acima de qualquer outra coisa. Isto para já não falar na antiga “Barata” na Av. De Roma.
GOsta assim e já um pouco velho para mudar.
E, caro ABS, fique certo de uma coisa: as livrarias, ao contrário dos homens, podem ressuscitar.
Já sabia que este meu post ia dar berbicacho. Algumas respostas:
ResponderEliminarTzinha, A "Ler Devagar" era, no Bairro Alto, e continua a ser, em Braço de Prata, um dos meus sítios. O meu coro vai lá cantar em Dezembro.
Teresa, Rosarinho, naturalmente que o mundo é tudo menos a preto e branco e as lições antigas perduram nos que têm ouvidos para ouvir. Nada disto invalida o que eu disse: que antes se vivia muito pior em todos os sentidos. As boas recordações do passado não nos devem tornar cegos perante esse facto. Caso contrário, aí, sim, vem a amargura de não se ter vivido nesses tempos que nunca existiram, e a lassidão que nos pode dificultar o fundamental: trabalhar todos os dias por um mundo melhor.
Caro Gin-tonic, não leia azedume nas minhas palavras: apenas alguma ênfase que, admito, terá soado exagerada. Dir-lhe-ei, que, em termos de terreno comum, as nossas livrarias terão sido provavelmente as mesmas. Eu juntar-lhes-ia a Bertrand do Chiado, a Sá da Costa, a Guimarães, a Buchölz, a Férin, para não falar dos alfarrabistas e livreiros de segunda mão, a começar no Lavra, passando pela Trindade e indo por aí fora... mas mais que as livrarias, são os livros e os que os amam o que conta. E isso tanto pode acontecer no bairro como no supermercado ou na feira.
Quanto a músicas, tenho o álbum branco em versão CD comemorativa dos 30 anos, salvo erro. Raramente o oiço. Em compensação, esta manhã ouvi de seguida o "Every good boy deserves favour" e o "Seventh Sojourn". Nesta estou seguramente consigo.
Caro ABS,
ResponderEliminarNão pude deixar de recordar a frase sábia, que cito de cor, correndo o sério risco de não ser tal e qual(fica pelo menos fiel ao conteúdo): "Se hoje vemos mais longe, é porque somos anões sentados ao ombro de gigantes."
A melhor qualidade de vida só é possível, porque outros no-la proporcionaram. Não usufruímos de tudo o que está hoje ao nosso alcance, vindo do NADA.
Alguém nos legou uma herança, que, eu pessoalmente, agradeço e valorizo. Aceitar este passado, em nada me retira qualidade ao presente, em nada me diminui.
Entender o esforço e generosidade subjacente a esta dádiva, só acrescenta valor, só me faz sentir mais privilegiada.
Repare na sua frase:
"... mas mais que as livrarias, são os livros e os que os amam o que conta".
ABS não teria um único livro de história ou outro para ler, caso não fosse "essa gente" que viveu num "mundo de esterqueira", mas que se preocupou, geração após geração, em preservar o que de melhor melhor inventado, o que de melhor foi pensado ou escrito para usufruto futuro.
À sua frase:
"As boas recordações do passado não nos devem tornar cegos perante esse facto."
respondo, os bons momentos presentes não nos devem tornar cegos perante os que arduamente nos deixaram um mundo com mais qualidade do que aquele que encontraram.
O meu contributo para um mundo melhor é ínfimo, devo tudo, quase tudo aos que viveram antes de mim.
Já em relação aos afectos e à sua qualidade, creio ser difícil medi-los ou estabelecer paralelos relativamente à capacidade de amar o próximo seja antepassado ou contemporâneo.
Na minha opinião, neste plano o ser humano evoluiu pouco, se é que chegou a evoluir.
Não estou a tentar provocar, estou apenas a ser sincera.
ABS,
ResponderEliminarDesculpe, mas resolvi responder ao seu desafio:
"antigamente é que era bom.(...)Desafio alguém a mostrar-me um exemplo que seja de que, nesse antigamente arcadiano as coisas eram melhor."
Antigamente, muito antigamente, entre os anos 469-399 a. C., viveu Sócrates, um ilustre filósofo grego que combateu com aspreza a sofística e a falsa retórica. Segundo reza a história, tudo lhe servia de pretexto para o ensino, tendo resistido às ilegalidades com coragem moral. O seu discurso pretendia buscar a verdade e expor o erro. Defendia como dever da filosofia, investigar as questões éticas. Chegou aos nossos dias a famosa frase, que lhe é atribuída: "Só sei que nada sei".
Hoje, aqui, em Portugal temos um Sócrates, muito ignorante, licenciado por fax. Tudo lhe serve de pretexto para desprezar o ensino e os mestres, embora distribua Magalhães às crianças, numa inaudita caça ao voto. Impõe leis que quebra (cigarrinho no avião, atrás da cortina).Usa a falsa retórica dia, dia sim,e esconde a verdade e os erros, não revelando preocupações éticas. A frase que mais vezes lhe ouço é proferida com uma total arrogância e sobranceria, que fere a humanidade: "Era o que faltava! A lei é para cumprir!"
A sua postura é a de: "Eu sei tudo".
Desculpe, ABS, mas, eis o meu exemplo, o de "antigamente é que era bom".
Julgo que ao pé do Sócrates, o genuíno, o de antes de Cristo, se partilhavam ideias e sentimentos. Não duvido de que se evoluia nessa partilha. Respirava-se certamente maior sapiência e mais humildade. Haveria para quem com ele privava e com ele se identificava maior qualidade de relações humanas.
O de "antigamente é que era bom", digo eu.
que fere a humanidade
ResponderEliminarCorrijo: retirar a vírgula e substituir o "que" por "e"
Rosarinho,
ResponderEliminarO erro provavelmente é meu, levando-a a não perceber o que pretendo dizer. Vamos a ver se consigo desta vez.
Sempre houve personagens notáveis. A nossa civilização assenta na sua obra. Sempre houve personagens morais. A nossa ética assenta nos seus princípios. Até aqui estamos de acordo. Mas não foi sobre nada disso que escrevi. Falo da vida do ser humano comum, anónimo, não especialmente inteligente, remediado, que nasce, sobrevive, reproduz-se, envelhece e morre. Esse ser humano, sem nome através dos tempos, está hoje incomparavelmente melhor do que alguma vez esteve na história da humanidade. A qualidade de vida existe hoje para mais seres humanos do que alguma vez existiu. E o facto de lermos Sócrates com espanto e respeito não nos deve fazer esquecer que, por exemplo, na época dele as mulheres morriam de parto aos catorze anos, quando não era mais cedo. Aqui, repito, há apenas factos. Não há, nem nunca houve, menorização de quem lutou, antes de nós, por um mundo melhor. Portanto, Rosarinho, por favor não confunda as coisas e não ponha nas minhas palavras o que eu não escrevi nem penso.