15 de março de 2006

Virtudes

Ainda do «Asno de Ouro», livro com histórias dentro de histórias, deixo aqui esta, exemplo de grande virtude!

«(...)quando nos hospedámos na primeira estalagem, soubemos da divertida infidelidade da mulher de um pobre homem; vou contar também essa história.
Caído na indigência, o pobre homem apenas vivia do magro salário do seu trabalho diário; a mulher era também pobre, mas conhecida por se entregar à mais tremenda libertinagem. Um dia, quando o marido partira muito cedo para ir ao trabalho, um amante audacioso logo entrou furtivamente na casa; e, enquanto o amante e a mulher se entregavam tranquilamente aos seus combates amorosos, o marido, que tudo ignorava e nem sequer suspeitava de coisa nenhuma, voltou imprevistamente e, vendo a porta fechada, pôs-se a bater e até a assobiar, felicitando-se pela prudência e castidade da mulher.
Mas a astuta, muito prática nessas feias manobras, prodigalizou ao amante alguns beijos rápidos e ardentes, e escondeu-o num tonel meio enterrado a um canto; depois, abrindo a porta, recebeu o marido com estas palavras azedas:
- É então assim que tu voltas sem um óbolo, para andares por aí de braços cruzados em vez de ganhares, com o teu dia de trabalho, o preciso para viver e comer alguma coisa? E eu, infeliz de mim, que dia e noite canso os dedos a fiar a lã, a fim de ter ao menos uma lâmpada acesa para iluminar a nossa triste casa! Como Define, a minha vizinha, é mais feliz! Logo de manhã se farta de alimentos e de vinho, e se diverte com os amantes!
- Que dizes tu? - volveu o marido, recebido desta maneira. - Embora o mestre da oficina, ocupado a seguir um processo, tenha mandado interromper o trabalho, no entanto eu soube providenciar para a refeição de hoje. Vês esse tonel vazio, que ocupa inutilmente tanto espaço e que só serve para nos embaraçar? Vendi-o por cinco dinheiros a um particular, que não tarda aí para o pagar e levá-lo. Vamos! Por que não te preparas a dar-me uma ajuda para o desenterrar dali e entregá-lo ao comprador?
Apoderando-se da ideia, a mulher astuciosa retorquiu, com um riso de troça:
- Na verdade tenho um homem hábil, um esperto negociador, que vai entregar por um preço menor uma coisa que eu já vendi por sete dinheiros, eu que sou apenas uma mulher e mal saio de casa!
Alegre ao ouvir o preço, o marido perguntou:
- E quem to comprou tão caro?
Ao que ela respondeu, fingindo baixar a voz:
- Imbecil! O comprador está dentro do tonel, a verificar o seu estado!
Entrando no jogo daquela astúcia feminina, o amante levantou-se e disse alegremente:
- Boa mulher, será preciso dizer-lhe isto? O seu tonel está demasiado velho, e rachado em vinte sítios. E tu, quem quer que sejas, bom homem - continuou ele, voltando-se ironicamente para o marido - por que não trazes uma luz a fim de que eu possa ver, raspando a porcaria interior, se o tonel afinal me serve? Não penses que o meu dinheiro é mal ganho, para vir perdê-lo aqui!
Sm demora, e sempre sem a menor suspeita, aquele marido impagável apressou-se a acender a lanterna, dizendo:
- Irmão, tire-se daí e deixe-me trabalhar, para poder entregar-lhe o tonel bem limpo.
Com estas palavras, tirou a veste, pegou na lanterna e, encolhido dentro do tonel, pôs-se a raspar a velha borra.
Entretanto o amante, o bonito rapaz, curvado sobre a bela cujo ventre se apoiava ao tonel, acabava tranquilamente o que a chegada do marido interrompera; e a adúltera, com a cabeça debruçada para dentro do tonel, troçava do pobre marido, apontando com um dedo um ponto para raspar, e depois outro. Até que, concluído o trabalho dos dois lados, o pobre homem, tendo recebido os sete dinheiros, foi ainda obrigado a levar às costas o tonel, a casa do amante da mulher.»

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