1 de fevereiro de 2006

O SERGINHO (Parte I)

É sempre uma sensação boa quando no nosso mister conseguimos atingir os patamares e objectivos a que nos propusemos. O moral é elevado e as coisas parecem rolar sobre carris, esquecem-se pormenores que em situações mais adversas são motivo para deitar abaixo mesmo o mais dedicado dos trabalhadores e ao final de cada dia sentimos que, mesmo que incompreendido, o dever cumprido é sentimento que culmina esse mesmo dia. Naquela manhã, eu era a imagem do polícia realizado, acabado de entrar na Secção de Justiça (SJ) do Comando de Lisboa, uma das prestigiadas subunidades da Polícia da capital e que fazia parte dos sonhos de futuro de uma maioria substancial dos agentes da Corporação. Para além do facto de nas brigadas se actuar à civil e poder-se assim realizar um trabalho continuado e sistemático sobre casos mais complicados de delinquência e crime, ali sentíamo-nos de certa forma na pele dos mais destemidos e perspicazes detectives de série de TV. Era por assim dizer, salvaguardadas as devidas distâncias e realidades, um “Hill Street” à portuguesa. Ao contrário de hoje, a lei de então deixava muito pouco campo de manobra para a investigação criminal no seio das forças de segurança pública, trabalhando estas com base na prevenção, no imediatismo das ocorrências, flagrante delito e pouco mais. Obviamente, as vantagens que tinham (e continuam a ter) os agentes trajando civilmente eram a actuação revestida do factor surpresa escudado na falta da farda a qual tem efeito dissuasor para as actividades ilícitas nada desejável naquele tipo de serviço e a movimentação mais discreta entre a população.

Inicialmente fui convidado para integrar as equipas da SJ como motorista das brigadas o que me dava a possibilidade de rodar pelas muitas equipas que compunham o Departamento e dessa forma rodar por todo o Distrito de Lisboa e apurar os métodos, técnicas e procedimentos policiais que habitualmente não se aplicavam nas tradicionais Esquadras e serviço de patrulha. Depressa fui confrontado (e de que maneira!) com a realidade das mais diversas actividades delituosas mas uma delas, a que alguns apelidam de “arte”, caracterizada pela destreza e método sub-reptício que os “artistas” usam na sua consecução, que é tão simplesmente o furto subtil, praticado por esse esfaimado espécime urbano que ataca bolsos, malas e afins, à laia de parasita protozoário que “alivia” a sua vítima dos haveres pessoais e que todos conhecemos por carteirista (carteiros, na gíria policial), sempre me chamou a atenção.

Ao fim de duas semanas na SJ, já todas as rotinas da viagem casa – trabalho e vice-versa estavam gravadas na minha mente assim como já estavam memorizadas as imagens, nomes e áreas de acção de umas boas dezenas de “carteiros” em actividade na cidade. Entrei no metro na Estação do Colégio Militar e fui-me encafuando por entre a turba de gente que àquela hora se dirigia para a Baixa da cidade. Estava fresco lá fora mas a carruagem fazia lembrar uma imensa sauna, pejada dos mais variados aromas que iam do corrente after-shave barato ao subtil Cardim, passando claro pelos tradicionais e sortidos cheirinhos a sovaco e sulfato peúga sem esquecer o resultado dos alívios irritantes das flatulências de alguns mais descuidados. Bem vistas as coisas sempre era o meio mais rápido de chegar à Baixa e a pituitária lá tinha que sofrer estes apertos em solidariedade com outros igualmente dolorosos de pés, apalpões, esfregadelas, enfim, tudo aquilo que faz parte de uma viagem de metro em hora de ponta. Em cada paragem numa estação era aplicado o velho princípio, típico de todos os metropolitanos, do “cabe sempre mais um” e ao cabo de duas ou três estações já me encontrava literalmente espalmado contra o vidro da porta oposta à entrada, rezando a todos os santos para que o maquinista não tivesse a infeliz ideia de abrir as portas do lado errado. Chego a equacionar a hipótese (meramente académica, eh!eh!) que hoje, com a idade que tenho, posso vangloriar-me da minha falta de barriga, graças ao facto de durante todos estes anos andar metido dentro daquele espartilho colectivo. Na posição incómoda em que se viaja nestas condições, os breves minutos passados dentro daquele cúbico subterrâneo, levam-nos a fazer as coisas mais diversas. Há quem durma, aproveitando o facto de ir enfaixado entre os seus pares e assim repor alguns minutos de descanso perdidos pela necessidade de madrugar, outros dedicam-se à leitura dos diagramas da rede de transportes, miúdos e graúdos deleitam-se com os prazeres de escarafunchar as fossas nasais, fala-se de bola, da vida, apreciam-se os glúteos generosos das meninas dos painéis de publicidade e transferem-se as reacções que elas provocam em reflexos transmitidos às mãos que percorrem, encobertas pelo gentio, os rabiosques das “vizinhas” (quantas vezes “vizinhos”), que ora protestam e assentam umas “latadas” naquele que nem gosta dessas confianças, ou então “manobram” de forma a facilitar o devaneio alheio. Misturado com os sons metálicos da máquina em andamento, um lamento daqui, um ai dali, todos compenetrados lá seguem até ao seu destino onde se precipitam na gare como se de uma lancha de desembarque nas praias da Normandia em 1944 se tratasse.
A dada altura da viagem, alguém se encosta a mim para se desviar da incontornável figura do invisual que a custo tenta evoluir por entre aquela massa compacta de gente. A mole humana, num misto de desagrado e compaixão lá vai dando passagem ao pobre pedinte enquanto o fulano contínua a apertar-me contra o vidro e não alivia a pressão depois de passar o cego. Com a paciência que se exige nestes momentos, tirando partido da minha esguia figura, arranjo forma de me encaixar, ainda mais, de forma a não oferecer o cós das calças (e o seu conteúdo, claro) à possível investida de algum “rebarbado”. Já quase me falta o ar e não há mais nada em que pensar; a viagem nunca mais termina. Mergulho o meu olhar no reflexo do vidro da porta onde vou alapado e observo, de um ponto de vista diferente a floresta de pernas e corpos atrás de mim…


(continua)

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