31 de outubro de 2005

O Morcego (parte II)

As dúvidas ficaram desfeitas. Por mais credibilidade que se desse aos atentos trabalhadores (só alguém muito fora do seu perfeito juízo estaria ali a brincar com a polícia), depois de revolver a casa da velhota, nem uma barata se vira fugir à invasão policial. Até as gavetas e portas da mesa-de-cabeceira foram abertas (seria impossível, mas, com o que já se viu nesta profissão!). Do roupeiro as poucas roupas que vieram para fora, não traziam “brinde” e debaixo do velho sofá da sala, não cabia a mão de uma criança. Raios, seria este um assaltante com dotes de invisibilidade? Não fora a sagrada família, cuidadosamente mantida num altar, no canto do quarto e seria de desconfiar se a senhora não se dedicaria às Ciências do Oculto e algum espírito teria então entrado sem se fazer convidado.
- Avozinha, parece que nada tem a temer. Se alguém cá esteve não mexeu em nada e saiu sem que o pessoal da obra se tenha apercebido – disse o Almeida à locatária.
- Antes assim, filhos, antes assim – respondeu ela, aliviada mas em tom pouco convincente – mas e se ele volta?
Era compreensível o receio da velhota. Aquele local era na realidade bastante isolado e a partir do final da noite, muito pouco movimentado. A pobre criatura nem telefone tinha e se gritasse, mesmo que fosse na rua, só com muita sorte alguém lhe poderia valer. Estava visto que a senhora não teria descanso nos próximos dias e alguns indícios davam a entender que alguém tentara mesmo entrar lá dentro. A situação foi colocada às instâncias superiores que determinou a uma agente feminina que permanecesse em casa com a senhora, durante essa noite e ficou deliberado que os carros da área passariam naquela zona com frequência para se inteirarem da situação. A mulher ficou mais aliviada e logo ali fez questão de oferecer um café ou um chá aos Guardas que por ali passassem. Mais não podia fazer, afirmou ela, como forma singela de agradecimento pela prontidão dos cívicos. Ficou assim combinado.
*****
- Maravilha este Frango!
- Podem crer, em especial porque há muito que não me sentava para comer desde que ando neste turno. Parece que as ocorrências esperam a hora da “janta”.
- Bem, sendo assim, vamos retomar a patrulha. Passamos pela casa da velhota para ver se está tudo bem com ela.
Ao sentir a viatura policial parar à porta, a dona da casa e a agente abriram a porta, convidando os polícias a entrar.
- Entrem, entrem se fazem o favor. Já jantaram? Aqui a menina vai jantar comigo. Ia agora começar a aquecer a comida. É simples, mas de boa vontade – convidou a velhota.
- Obrigados, minha senhora. Nós comemos sempre antes das sete da tarde, quando começa a escurecer. Depois, quase sempre não há tempo. Já cá canta – agradeceu Almeida, dando umas palmadinhas no seu proeminente estômago – viemos só ver se estava tudo bem. Se houver algo de estranho, aqui a nossa colega informa pelo rádio e nós vimos logo.
- Mas então têm de tomar um cafezinho. Faço questão – replicou a velhota enquanto ia empurrando os polícias para o interior da casa.
O pessoal, não querendo fazer a desfeita à simpática avozinha, lá entrou e esta mandou-os sentar na sala.
- Vou só por a água a aquecer e aproveito para pôr a sopa ao lume.
Depois de executada esta tarefa, a senhora veio para a sala e lá continuou a tagarelar com os agentes, lamentando-se do isolamento em que ficara desde que a zona das Laranjeiras fora invadida por uma série de empreendimentos habitacionais. Qual não é a nossa surpresa quando, enquanto ouvíamos pacientemente a nossa idosa anfitriã, do interior da cozinha ouve-se um estrondoso ruído de tachos a cair, secundado de um sonoro e “dorido” FODASSE!!.... A reacção foi imediata. Como se o sofá tivesse um dispositivo de ejecção, saltámos todos, precipitando-nos para a cozinha. Ali, junto ao fogão, um velho conhecido nosso, o “Necas do Alto”, estava estatelado no chão, agarrado ao seu pé direito, guinchando de dores.
- Não me bata “Sô” guarda… ai o meu pé!... Ai minha mãezinha! Ai o meu pé – gritava o meliante com uma voz misturada de terror e dor.
- Anda cá meu “melro” – o Almeida pegou-lhe pelo colarinho e levantou os seus quarenta e poucos quilos como quem levanta um gato do chão – de onde saíste tu meu sacana? Quando entraste? Melhor, por onde entraste tu?
A janela da cozinha continuava fechada e o único acesso era através da sala. Era fácil de concluir que aquele tipo tinha ali estado desde sempre.
- Onde estavas tu meu safado? Onde estavas escondido? Ainda há pouco saíste da “pildra” e voltaste ao mesmo! Bem que me tinham dito que já tinhas voltado para o Alto dos Moinhos! Mas onde estavas tu meu rafeiro?
- Ai o meu pé! Não me bata, ai o meu pé que está a arder!... – continuava o desgraçado, ignorando as perguntas e sacudidelas do portentoso Almeida.
Perante tais queixas, não foi difícil de resolver o mistério. Olhámos todos para o pé, depois para a grande cafeteira caída junto ao fogão, o chão, todo molhado com água fumegante e finalmente, reparámos na chaminé, daquelas antigas, com uma caixa de saída volumosa e com aqueles ferros que outrora eram usados para pendurar enchidos. Alguém se aproximou desta e concluiu o óbvio: O Necas entrara na casa e ao aperceber-se da presença da polícia, a sua limitada mas experiente massa encefálica, transmitira a ordem ao seu corpo franzino, para se esconder no seu interior e aguardar o melhor momento para abandonar o local sem problemas. Não contara com aqueles factores que tornam o crime igual a qualquer outra actividade praticada pelo pacato e comum mortal: a imperfeição e o imprevisto. E os imprevistos foram vários; a persistência dos trabalhadores da obra, a vontade de ajudar a pobre senhora, que permitiu a permanência de uma agente junto a ela e por fim, um inconveniente fogão, ligado, com uma panela de sopa e uma cafeteira de água a ferver. Ao sentir o desconforto do calor gerado a seus pés, a um passo de se transformar em presunto fumado, ao tentar sair, mergulhara o seu pé na água em ebulição e a partir daí, terminou a sua tentativa de fuga. O Necas, pulara da chaminé para a panela. A partir desse dia, juntou ao seu “nome de guerra” o justo cognome de “O Morcego”.

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