19 de setembro de 2005

Uma Vaca na Avenida…

Ainda não vão muitos anos em que a Avenida da Liberdade era uma das zonas privilegiadas de Lisboa no que diz respeito ao mercado do sexo. Entre a Praça dos Restauradores e a zona do cinema Tivoli, a procura chegava a exceder a oferta e as chusmas de rebarbados, prostitutas, chulos e polícias, rodavam pela área num ballet que se intensificava a partir do pôr-do-sol. De quando em quando, lá vinha a “ramona” e a malta ou fugia ou batia com os costados na Praça da Alegria, Rossio ou, na pior das hipóteses, no Comando da Polícia de Lisboa, na Rua Capelo, ali ao lado do Governo Civil. Hoje, contudo, aquela zona da cidade está relativamente mais calma no tocante ao movimento de "meninas", tudo devido não só à insistência dos frequentadores da zona junto das autoridades civis para acabar com a “pouca-vergonha” que grassava naquelas paragens, mas também por ter havido uma série de encerramentos de pensões na área e o aparecimento de novas actividades comerciais que afastaram a clientela e consequentemente as “meninas”. Estas ou passaram a frequentar outros “poisos” ou então foram trabalhar nas emergentes casas de massagens, sempre mais discretas, tanto para elas e seus chulos como para os clientes, agora menos expostos a olhares de mentes mais censoras.

Ficam contudo belas histórias naquele local. Uma delas, a qual tenho pena de não ter assistido ao vivo, quase faz parte do anedotário policial nacional em especial porque aconteceu na realidade. Passo a contar:

Era uma fria madrugada, idêntica a tantas outras madrugadas de inverno em Lisboa. O frio húmido provocado pela maresia que subia desde o rio em direcção ao Marquês, entrava pelo capote do Luís Santos e gelava-lhe os ossos. Nem o improvisado colete de jornais amenizava a crueza daquele frio. Porra, o frio sêco lá das serras transmontanas sempre era mais suportável. À falta de abrigos capazes de o proteger daquela gélida humidade que teimava em segui-lo e penetrar dentro dos ossos, restava-lhe cumprir o giro de forma a manter as pernas e os pés quentes. Ao seu lado, o Martins há muito que se mantinha calado; dir-se-ia que os lábios haviam ficado tolhidos pela maresia. Era normal para um algarvio, habituado à brandura das noites de Tavira. A cada palavra que pronunciava na sua voz tipicamente cantada, havia um acompanhamento do bater de dentes, como se de castanholas se tratasse.

- Merda de frio – disse o Santos – hoje nem gado há ao ataque!

- É verdade, sempre dava para levar algumas até à Esquadra e ficar por lá uma hora a preencher papelada – lamentou o Martins.

- Já “bamos” na quarta “bolta” ao giro e nem o subchefe da ronda apareceu! Não há meio de serem sete da manhã – lamentou o Santos.

Enquanto tinham este diálogo, eis que ambos se deparam com algo insólito. Ali, perante eles, no meio da Avenida da Liberdade, junto à entrada da Praça dos Restauradores, um portentoso espécime bovino evoluía pelo asfalto – melhor, escorregava, já que os cascos não estavam adaptados à calçada ali existente à data – enquanto era perseguido por dois indivíduos que, à laia de campinos sem montada tentavam em vão laçar o bicho. Os dois cívicos olharam-se um mutuamente questionando-se qual deles teria aptidões para moço de forcado. Fizeram ambos uma rápida leitura do insólito com que se deparavam. Ao que parece o animal, um belo exemplar de vaca taurina, tinha conseguido saltar do interior da caixa do camião em que era transportada e agora passeava-se em pesado trote – o bicho pesava mais de dez arrobas pelo menos - em plena entrada da Baixa Lisboeta.

- Olha pá!... Grande “baca”! – o Santos nem queria acreditar no que via.

- Temos de informar a Central – replicou de imediato o Martins enquanto mirava em redor, procurando um refúgio, nada interessado em garraiadas, muito menos aquela hora.

- “Bou” informar já – anuiu o Santos, fazendo chamada via Walkie-talkie para a Central rádio.

- Posto que chama 21, informe o que se passa – respondeu o operador.

- Oh, “bint’ um”, é para informar, que esta patrulha detectou, aqui na junção da “Abenida” da Liberdade com os Restauradores, uma “ baca”. A mesma anda a correr no meio da “bia” pública, mais concretamente, no meio da faixa de rodagem e “proboca” embaraço na circulação…

- Atenção para esse posto; mais atenção à linguagem via rádio – respondeu com ar enfastiado o operador de serviço – esse posto sabe as normas das comunicações e mormente quanto ao uso de linguagem inadequada. Mais respeito pelas comunicações; use o termo prostitutas quando se dirigir a “21”.

- Ora essa, “vint’um”, é mesmo uma “baca” – tornou o Santos, apercebendo-se que o operador estava a fazer confusão com as meninas que por ali costumavam andar – mande uma Secção de Piquete que a gente aqui não dá conta dela. Andam ali dois homens a tentar apanhá-la, mas ela foge-lhes e tenta marrar-lhes.

- Mais uma vez, 21 informa esse posto para usar mais moderação na linguagem; tente controlar a situação da desordem e não deixe que os indivíduos se envolvam em confrontos físicos. Esta Central vai de imediato enviar o carro patrulha da área e uma brigada à civil para tentar deter os proxenetas que querem agredir a “senhora” – a voz do operador rádio endurecera após a "ousadia" do guarda no terreno.

- Mas, “vint’um”, esta “baca” é mesmo uma “baca”, tem quatro patas.. e perigosa. Já “botou” um dos homens por terra e o outro anda agora a correr à frente dela. Dirigem-se para a Praça da Alegria. Este posto segue em perseguição do animal…

- Tenho a informar esse posto que irá ser dado conhecimento superior da sua conduta de desrespeito ao que se encontra estatuído no que respeita a comunicações rádio. Isto não é brincadeira colega. Separação; informe se a mulher está a tentar agredir o suposto cliente com arma branca e se dão indícios de embriaguês. E deixe-se de considerações supérfluas...

O Martins, não aguentou mais. Perante a insistência do operador, que estava convencido de estar a ocorrer uma desordem ou rixa entre chulos, clientes e prostitutas, não se conteve e quebrando todo o protocolo usual das comunicações rádio, deixou-se de formalidades e gritou em plenos pulmões para o aparelho:

- Foda-se colega! Quem não está a brincar sou eu. Aqui não se trata de porrada entre putas e chulos. Esta “baca” é mesmo uma “baca”… anda em quatro patas, é malhada, tem cornos, marra e faz muuuu!

O silêncio rádio que se seguiu deu a entender que a mensagem chegara clara, perceptível e concisa…


Boa semana a todos.

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