1 de agosto de 2005

A PISTOLA.

Este fim-de-semana, enquanto lia a revista Sábado, li um artigo acerca do fim, acredito que temporário, da imagem que nos habituámos a ver do polícia londrino como defensor da ordem, desarmado. O mito não morreu após os atentados de Londres, mas há muito que os Bobbies não são esses cívicos desarmados que tão apontados são como exemplo a seguir nos restantes países ocidentais. Só quem esteja totalmente desfasado da realidade que encerra uma metrópole de 10 milhões de habitantes poderia pensar que a capital britânica é um paraíso. Pelo contrário, a bela capital britânica é uma das cidades onde se registam grandes índices de criminalidade, alguma bem violenta. O crescente aumento desta criminalidade levou a que as autoridades tomassem uma série de medidas preventivas que vão da vídeo vigilância em tempo real aos vigilantes cívicos, civis que desenvolvem trabalho de informação e vigilância nas ruas da cidade sem contudo possuírem autoridade de polícia; digamos que são uma espécie de stweards dos estádios de futebol que patrulham a ruas, sempre supervisionados por um agente da Metropolice. À primeira vista poderão parecer agentes policiais, mas quando confrontados com situações que impõem aplicação de medidas de polícia, logo surgem uma ou mais patrulhas. As forças de reacção/intervenção rápida estão prontas para a acção ao mais mínimo sinal de criminalidade ou ocorrências potencialmente violentas, que incluem elementos fardados e à civil, armados. Há mesmo zonas, desde meados da década de 80, em que os Bobbies transportam armas de fogo ou noutros casos aquilo que é conhecido como armamento menos letal (gás C-4, pimenta, etc.) mas sempre dissimulados debaixo dos seus casacos, ou seja, nunca à vista do cidadão. É precisamente acerca de armas escondidas que hoje vos conto este episódio.

Há cerca de 18 anos, tinha eu acabado de ingressar nos quadros da PSP e, como a maioria dos novos agentes, fui colocado em Lisboa, mais concretamente no então problemático e complicado Bairro da Serafina que incluía os Bairros da Liberdade, Casal da Sola, Quinta do Zé Pinto, Tarujo, Vila Ferro, entre os mais conhecidos. Claro que havia pouca vontade de ser colocado ali, onde as “praxadelas” aos novos cívicos não se cingiam ao interior das paredes da Esquadra, mas eram praticadas, embora mais dissimuladamente, claro, por muitos dos habitantes que aceitavam a presença da polícia de forma natural. Era uma forma de receberem os novos polícias no seio da grande família que é o Bairro e desta forma testar desde logo a fibra da nova rapaziada. Desde os primeiros dias pude compreender a velha máxima que faz chocar a teoria com a prática, ou seja como se deve fazer segundo os livros e como se faz na realidade. Sempre que tínhamos um tempo livre, deixava-se aquela “ilha” plantada no meio da cidade e partíamos à descoberta da urbe. Numa dessas idas, tínhamos acabado de receber as nossas armas individuais, descobrimos quanto se torna incómodo transportar aquele engenho de metal frio e relativamente pesado. Só o tempo torna o gesto de dissimular uma pistola num coldre interior e fazer do acto uma rotina, um hábito comum ao longo da vida.
Fomos em grupo até à Praça de Espanha. O Castro queria comprar um auto-rádio e os indianos da feira ali instalada faziam uns preços mais acessíveis que a maioria dos estabelecimentos. O incómodo e a sensação que provocava trazer ali o “ferro”, era o de estar constantemente a ser observados. Quem estivesse mais atento, julgaria alguns de nós como sendo mais um desses jovens com tendências sexuais distorcidas, já que estavam sempre a olhar para os camaradas, tentando ver se era visível algum vulto comprometedor; claro que o atento observador via os olhares dirigidos a uma zona para a qual um homem habitualmente não olha noutro homem.

Andávamos então em negociata pelas várias bancas lá do sítio, quando oiço uma criança que reclama algo da sua mãe. Ao início, não liguei mas depressa percebi o que o puto, que não tinha mais de 6 anos, repetia várias vezes a palavra pistola. A mãe, uma mãe igual a todas as outras mães, ignorava os pedidos insistentes do petiz com a velha técnica de ignorar o mesmo, rebuscando distraidamente uma série de bugigangas pelas quais não teria qualquer interesse e proferindo considerandos acerca da inutilidade da maioria dos artigos expostos.

- Mãe… mamã!!... – Torna o puto.

- Larga-me, chato. Acha que isto vale o dinheiro? Para que serve aquilo?... – Continuava a mãe na técnica dissuasória, indiferente à insistência do rebento.

- Mãe… a pistola!... – Continuou a jovem “melga” agarrando-se à fralda da camisa da mãe, puxando-a pela enésima vez.

-Cala-te, já te disse, não te compro nada, muito menos pistolas; olha-me este agora, ora querem lá ver!!!...

O Puto não desistiu, continuou a sua desigual luta, os olhos já a lacrimejar. Adivinhava-se uma daquelas irritantes birras de criança, chave da realização dos desejos de muitas crianças, o que regra geral encontra como defesa dos papás a pior defesa que se pode fazer: aceder ao desejo. Mas aquela mãe, era de ferro; uma negociadora de gancho. Não se deixou ir em pressões e tudo aquilo que o jovem conseguiu foi sentir uma valente palmada no traseiro, que felizmente não despoletou aqueles gritos que nos ferem os tímpanos (e esgotam a paciência). Remédio santo. Calou-se, embora se notasse, pelo tremelicar dos lábios e pelos olhos rasos de lágrimas que a coisa não ficaria por ali.

-Voltas a repetir a palavra pistola e levas uma tareia, mesmo aqui, em frente de toda a gente.

Que exagero, pensei. Não me recordo de muitas, mas reconheço a minha cobardia em não ter juntado a minha voz ao fedelho, em sinal de solidariedade para com posições idênticas por mim tidas no meu passado pueril. Traidor…sim, traidor, porque o puto olhava-me com um misto de pedido de auxílio e temor. Foi então que tudo se precipitou. O miúdo, levantou o braço, esticou o indicador, ensaiou mais um puxão na camisa materna e acusou:
- Pistola… ali, a pistola.

- Zás!... - Desta vez, não foi nos nadegueiros; era de prever. Foi mesmo na inocente face. A mãe, desesperada (ou ferida na sua incapacidade para impor a autoridade), assentou-lhe um tabefe, agarrou a criança pelo braço e arrastou-o aplicando-lhe um correctivo dos antigos. O infeliz continuava a repetir a malfadada palavra enquanto mantinha o indicador a apontar para o quiosque. Olhei e não vi no escaparate, pistola alguma; Perante a insistência daquele oprimido, enquanto se afastava o quadro de repressão familiar, refiz mentalmente novo segmento de recta entre o dedo e o destino do seu desejo e eis que se fez luz! Afinal, o puto tinha razão. O puto era bem o espelho da infelicidade dos que têm razão e são incompreendidos, calados na sua voz, cerceados da sua opinião… perante evidências, que só um cego não vê ou quem se julga soberano na sua autoridade teima em não ver. Ligeiro, aproximei-me do Castro que esticava os braços, tentando indicar um aparelho de que gostara e segredei-lhe ao ouvido:

- Pá, atenção!... Baixa a fralda da camisa. Tens o canhão a ver-se.

Coitado do ganapo!...

Sem comentários:

Enviar um comentário