21 de julho de 2005

a cara mais expressiva do cinema

ando a ler, em modo petisco, umas crónicas deliciosas do Vinicius de Moraes sobre cinema
aqui fica a que ele escreveu sobre a cara mais expressiva do cinema

A imagem de Joana D'Arc

Poucas coisas serão tão belas quanto a imagem de Joana d'Arc criada por Joseph-Delteil. Não será talvez tão autêntica quanto a de Bemanos, onde se pode quase sentir a criatura física, isenta de toda a legenda, relapsa e santa, a pobre heróica e frágil camponesinha de Domremy. Mas é muito mais rica de se imaginar. Delteil, infinitamente menor que Bemanos, plasmou a visão de Joana d’Arc em palavras que são pura substância e cor. O livro é uma paisagem constante de campos em pastoral, um constante sentir de perfumes, um eterno ondular de trigais, uma riqueza de vinhas e de bom pão, tudo tão limpo, tão arejado, tão simples.
O que é mais curioso é que Delteil consegue isso com um fino trabalho de técnica verbal, tão fino e leve que, a bem dizer, desaparece para suspender um estado infantil de beleza. O vigor das palavras que usa constantemente, palavras elementares da natureza, assim dosado, empresta uma grande e saudável magia a tudo, como uma lembrança da realidade e sonho confundidos.
É um livrinho inesquecível, que se lê entre alegre e chorando, mas de um só olhar, muito adorável que é. A Joana d'Arc de Bemanos abre uma ferida na carne da gente: dói, machuca, tão viva, tão humana, tão como qualquer um de nós. Essa pequena Joana perplexa é uma agonia em busca de um fim. Seu martírio é uma revolta terrível para quem o assiste, e sua covardia uma vontade de vingança que dá.
A Joana d’Arc de Bernard Shaw, confesso, por grande e especial tenha sido a felicidade do teatrólogo quando a criou, não deixa nada de bom nem de mau na gente. O demonismo sem objetivo de Shaw ainda uma vez prejudicou-lhe a criação. Sua Joana d'Arc pouco tem de francesa e mesmo sua perplexidade é uma coisa meio astuciosa. Das três só a de Delteil me trouxe alguma coisa de bom e tranqüilo.
Foi nela que Carl Dreyer, o grande cineasta, colheu inspiração para o seu filme: o filme é maior que o livro, maior que não importa o que se tenha dito ou escrito sobre Joana d'Arc. É a história da sua paixão e morte. Lembra um afresco colossal, em sua falta de progressão, em sua falta essencial de progressão. Palavra: Joana d’Arc é uma obra gigante em cinema. É a história dessa obra que me proponho trazer aqui, em crônicas próximas, porque dá-se que tive a sorte de conhecer ontem a Joana d'Arc de Dreyer. Mme. Falconetti, a grande intérprete francesa, escolhida pelo diretor entre muitas outras, entre as quais se achava a própria Pitoêff, se encontra, a bem dizer, perdida no Rio. Logo que a soube aqui fui procurá-la e tivemos uma grande conversa sobre Dreyer, o filme e tudo mais. Mme. Falconetti é uma rara figura. Poucos a sabem uma das maiores atrizes que a França já teve. Roberto Alvim Correia, que me falou sobre ela, contou-me sobre sua miraculosa interpretação na Phèdre de Racine. Seu próximo pronunciamento no seu debate sobre cinema e sua informação sobre Joana d’Arc fazem essa crônica feliz, muito feliz.

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