22 de junho de 2005

A Mathilde

O melhor lugar em casa para ter uma televisão é a despensa. Mas infelizmente, aí e na casa de banho são os únicos lugares em que a maior parte das casas não têm os famosos incineradores cerebrais. Noventa por cento dos desentendimentos com a Chris começam por causa da caixinha. Os outros dez por cento é por ela não conseguir perceber como é que eu sou capaz de viver sem cabo.

Até a Chris chegar eu conseguia viver sem cabo. Estando em minha casa eu acho que tenho o direito de ter o que eu quiser e é isso que tenho feito. Mas a Chris põe tudo em causa. Transforma as mais pequenas coisas num inferno. Leva tudo à letra, é insensível ao sarcasmo e imune à ironia. Para ela não há meios termos: tudo ou é preto ou é branco e não há nuances possíveis entre um e outro; ou é ou não é; nada de ses ou talvez; cinco é cinco; sessenta e nove é sessenta e nove.

Conheci há muitos anos uma personalidade assim objectiva. Mathilde tinha um corpo que podia ser definido com uma equação trigonométrica do segundo grau. Eram necessários senos e cosenos para definir as partes mais arredondadas mas podíamos desprezar sem remorsos as soluções complexas. As tangentes e as cotangentes tendiam, com a Mathilde, para infinito. Se quisermos vê-la de uma perspectiva arquitectónica poderemos dizer que tudo nela obedece à divina proporção: tudo nela se multiplicava ou dividia por um vírgula sessenta e oito. Para mim, que na altura em que a conheci procurava ainda discernir entre a necessidade de um mundo estético ou de um mundo ético, Mathilde parecia a síntese encarnada. Claro que me apaixonei. Cegamente como é próprio das paixões. Durante alguns anos foi Mathilde o motor da minha alma. Sei, por experiência, que uma paixão tem tendência a arrefecer e esse poderia ser o processo natural para me afastar de Mathilde. Mas não foi. Foi outra paixão que se foi insinuando e me fez perceber que a objectividade de Mathilde, apesar de intimamente coerente, bela, inocente, sistemática, racional, lógica e fecunda, tinha uma infinita falta de humor. Para Mathilde tudo era denotativo, os símbolos eram apenas processos de representação, as metáforas eram incompreensíveis e o estilo não tinha figuras.

Sei que ninguém pode ser tudo e ter tudo. Mas a descoberta de que Mathilde vivia num mundo fechado e que não se abria ao entendimento da complexidade do real; o sentir que Mathilde se contentava com a dimensão infinitamente manipulável das coisas e não entendia as variáveis subjectivas do entendimento nem a obscuridade das emoções, fez-me recuar de uma paixão que se tinha tornado evidente ela não ser capaz de partilhar.

Como com quase todas as minhas paixões, não foi uma separação violenta nem definitiva. Volto a ela sempre que o meu espírito deriva para indefinições e me sinto desintegrado nas minhas funções de homem sem raízes.

Suponho que foi por causa da televisão. A programação estava uma miséria e a Chris começou a embirrar. Depois de refilar por causa do cabo pegou no seis vírgula oitenta e três. Porquê seis vírgula oitenta e três? Ela achava pouco. E depois achava muito porque não sentia que fosse tanto. Perguntava: "como é que mediste isso"? Estava desconfiada por causa do três. Ainda se fosse seis vírgula oitenta, vá lá. Agora aquele três parecia-lhe uma precisão excessiva. Segundo ela, ninguém mede essas coisas com duas casas decimais. Parecia mesmo que eu tinha a intenção de a impressionar. Embora para ela um três naquele lugar nem aquecesse nem arrefecesse. Para a impressionar mesmo era preciso muito mais do que seis vírgula oitenta e três.


Ivo Cação


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