Os holandeses não se vestem como se vestem porque se preocupam com o estilo: a explicação para o seu modo de vestir é exactamente a contrária: eles vestem-se daquelas maneiras que aos olhos de alguns parecem tão "originais" ou tão "diferentes" simplesmente porque eles não dão importância nem ao estilo nem às combinações de côres nem às marcas. Vestem-se com o que lhes vem à mão; vestem-se com o que lhes veio às mãos nas feiras onde compram as roupas novas e usadas e a comida e o mobiliário e quase tudo.
Na Holanda, os centros comerciais são poucos. E estes poucos que existem são pequenos e têm horários curtos. Aos Sábados e aos Domingos os centros comerciais e as lojas fecham às seis e meia. A maior parte da roupa da maior parte dos holandeses não é comprada nem em centros comerciais nem em lojas: é comprada na rua; ou é comprada de uns conhecidos e/ou vizinhos para os outros; é transmitida dos pais que já têm os filhos mais crescidos para os pais que ainda têm filhos pequenos. E aqueles pais não precisam de ser familiares destes.
Na Holanda as pessoas sentem-se e são muito livres: livres para se comportarem, se vestirem, comerem, fazerem e viverem o que quiserem e como quiserem. A liberdade é institucional (está nas leis), é social (é aceite por todos) e é real (é praticada, é factual, é concretizada usualmente). Podemos apresentar-nos de uma maneira esquisita: ninguém vai reparar em nós e, muito menos, ninguém vai fazer qualquer comentário ao nosso aspecto. É possível entornar sopa no chão e ninguém vai reparar. É possível entrar, sentar e tomar uma refeição sozinho num restaurante e ser tão bem servido como se se entrasse bem acompanhado. É possível ficar com cara de parvo às portas de uma loja de diamantes, à espera que as portas que não são automáticas se abram sozinhas, vir um homem em smoking receber-nos a nós, com cara de parvos, t-shirt já suja, calções já sujos e chinelos de banho, convidar-nos a entrar e informar-nos de que, apesar da loja já estar encerrada (é Domingo e já são seis e trinta e cinco da tarde) talvez seja ainda possível dar uma vista de olhos aos relógios ou talvez uma pulseira para uma pessoa mais querida. E isto sem cinismo.
Porque são então os holandeses tão tolerantes, porque são eles tão livres? É errado pensar que os holandeses são imorais ou não sentem vivamente os seus melindres morais. Antes pelo contrário: os holandeses são um povo moralista. O que acontece é que uma das componentes desta moral é precisamente o respeito pela vida privada dos outros e o desvalor atribuído às intromissões, às mexeriquices e coscuvilhices. Como respeitam a vida privada dos outros, não olhando, não comentando, tratando bem todos, os outros sentem-se e vivem livres. Como isto acontece entre todos, de todos para todos, todos são livres e, naturalmente, tendem a apresentar-se e a ser exactamente como são e não como "a sociedade" quereria que fossem. Sendo assim, as pessoas individualizam-se muito e acabam por parecer esquisitas aos olhos de alguém provindo de um país onde as pessoas olham, falam e comentam (um português, por exemplo) e, por isso, ninguém é livre e, logo, todos acabam por ser normais (vestirem-se, comportarem-se e agirem como todos os outros).
Não sei se a maioria dos holandes é a favor ou contra o aborto, a favor ou contra os casamentos homossexuais, a favor ou contra o consumo de droga. Por princípio, razão e experiência, duvido muito de todas e quaisquer estatísticas. Sei que a maioria dos holandeses tem opiniões fortes relativamente a todos esses assuntos (é difícil encontrar holandeses sem opinião mesmo que em relação a assuntos menos debatidos ou até talvez mais técnicos). E sei principalmente que em qualquer questão em que o que está em causa é a liberdade individual, liberdade privada no sentido de não afectar terceiros, a opinião pessoal, qualquer que seja o seu sentido, não é exercida contra essa liberdade dos outros. O sentido das leis e das práticas sociais relativas àqueles três assuntos não são consequência de uma certa posição moral específica a cada assunto mas sim o resultado da mesma orientação moral de respeitar a liberdade individual e de não intromissão na vida privada dos outros.
O barco do aborto não é holandês. O barco do aborto não pode ser holandês. Se o barco do aborto é mesmo holandês, não tem dignidade para sê-lo.
As leis e práticas portuguesas em relação ao aborto não são muito diferentes das de outros países europeus (leia-se o que está escrito: "as leis e práticas"). Creio que em nenhum país europeu a questão do aborto é incontroversa. Creio que em nenhum país europeu há uma maioria esmagadora no sentido de uma ou de outra resposta que se possa dar a esse assunto. Creio até que este seja mais um daqueles assuntos em que, em cada sociedade em concreto, é possível encontrar uma variedade de respostas intermédias, sendo que a existência dessa variedade leva naturalmente ao não surgimento de nenhuma maioria clara relativamente a uma resposta específica. O que pode haver é uma tendência num sentido ou outro.
Mas vamos admitir que as leis e práticas portuguesas relativamente ao aborto faziam do nosso país um caso claramente minoritário e, até, aberrante em contraste com o resto da Europa. Nesse caso, sendo Portugal um Estado soberano, a atitude genuinamente holandesa em relação ao nosso país só poderia ser a de respeitar a nossa diferença, não se intrometendo, não comentando pejorativamente, respeitando o país na sua individualidade, individualidade essa que resultaria da sua liberdade, da sua soberania.
Os holandeses respeitam a liberdade individual e não se intrometem na vida dos outros, mesmo que defendam uma moralidade diferente. Ao nível dos Estados, o que é coerente com esta mentalidade é respeitar a liberdade (isto é, a soberania) de um Estado, mesmo que se defenda uma outra moralidade. Ao não demonstrar respeito pelas leis e práticas portuguesas, precisamente pelo facto de serem diferentes, o barco do aborto foi notoriamente anti-holandês.
Tipicamente holandesa foi a atitude do Ministro dos Negócios estrangeiros holandês que, afirmando total respeito e apoio às leis e ao que viesse a ser decidido pelo Governo português, pediu a este para reconsiderar a sua decisão de não deixar o barco atracar. Aquele ministro defendeu uma opinião diferente da do Governo português mas sem deixar de respeitar a soberania e "individualidade" portuguesas. Fê-lo usando um discurso moderado e em que o pedido era acompanhado por uma concessão (a do respeito pela decisão do Governo qualquer que fosse a decisão tomada).
Esta é outra característica da mentalidade holandesa: a sabedoria do que é a boa negociação: moderação por um lado e saber pedir e conceder por outro. Para reduzir a conflitualidade numa sociedade muito livre e que se deseja muito livre e para resolver com efectividade problemas a nível pessoal e ao nível social, a moderação é necessária por ser conciliadora (o confronto de posições extremas só leva a uma solução pela destruição da parte contrária) e a disponibilidade para conceder por parte de quem pede permite chegar a soluções em que ninguém se sente perdedor e , portanto, todos têm interesse em respeitar e manter o acordado. Se houvesse um mínimo desta mentalidade entre israelitas e palestinianos, já o seu problema (que é de facto extremamente simples, apesar do que é afirmado pelos comentadores e cientistas sociais) estaria resolvido há muito tempo.
Se eu fosse um extraterrestre chegado à Terra e com intenção de me instalar em definitivo por cá, sei bem que país pequeno, plano, húmido e esquisito escolheria. O mesmo para o qual o meu pensamento se dirige de cada vez que, após uma muito acesa e muito inflamada discussão política, alguém menos holandês do que eu me dá a sugestão muito ouvida de "se não estás bem, muda-te". Eu mudava-me.
Primeiramente eu lhe dou meus parabéns,
ResponderEliminareu lí toda a sua argumentação sobre os holandeses e eu adorei, não apenas pelo fato de eu amar a Holanda, mas também pela forma que você defendeu toda a individualidade desse país maravilhoso.
Eu gostaria de conversar mais com você sobre o assunto. Meu e-mail é:
igor.netherland@gmail.com
té mais
Da para resumir ?
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