3 de setembro de 2004

Símbolos Religiosos nas Escolas

A partir deste mês é proibido nas escolas públicas francesas que os alunos e as alunas façam uso ostensivo de sinais religiosos. O objectivo desta lei é qualquer coisa como manter o carácter laico das escolas públicas francesas. E a razão para a promoção desse carácter laico é manter em pé de igualdade todas as religiões, não deixar que umas se sobreponham às outras, permitir a dignidade de todas e a tolerância de todas e entre umas e outras.

Concordo que as escolas públicas tenham um carácter laico: não é função do Estado intrometer-se de forma alguma na vida religiosa das pessoas e, portanto, não faz sentido que o Estado utilize as escolas para objectivos relacionados com a religiosidade das pessoas. Um Estado não deve ter objectivos relacionados com a religiosidade das pessoas, essa é uma área de liberdade individual em que o Estado não deve ter nem exercer nenhum poder.

Vale a pena ter em atenção dois pontos que permitem perceber melhor o que é ou o que deve ser o laicismo da escolas e a relação entre esse laicismo e o Estado.

Em primeiro lugar, a escola pública será laica desde que seja o Estado a não introduzir na escola qualquer elemento religioso. Mas os professores, não enquanto servidores do Estado mas enquanto cidadãos munidos de liberdade religiosa, poderão se quiserem levar para a escola os elementos religiosos que entenderem e isso não afecta a laicidade do Estado, pois esses elementos religiosos não partiram ou foram dirigidos pelo Estado mas sim por cidadãos livres.

O Estado não deve prescrever, nem sugerir, nem de forma nenhuma incentivar ou desincentivar aos professores qualquer conduta de natureza religiosa mas estes, sendo cidadãos livres, poderão ter na escola uma conduta religiosa. A religiosidade nas escolas pode partir dos cidadãos livres mas não deve partir (nem ser impedida) a partir de cima, ou seja, do Estado.

Em segundo lugar e pela mesma ordem de ideias e mais importante ainda, o Estado não deve introduzir elementos religiosos nas escolas mas não deve nem pode impedir que os alunos, enquanto cidadãos munidos de liberdade religiosa, levem os seus próprios elementos religiosos e tenham uma conduta de natureza religiosa nas escolas.

"Estado laico" significa que a administração pública não tem religião oficial e se abstém de condutas ou orientações religiosas. Não significa nem pode signicar que os cidadãos são forçados a ser laicos, como passará a acontecer aos alunos e alunas franceses.

A tal norma francesa que entra este mês em vigor é pois restritiva da liberdade religiosa. Esta lei indicia uma mentalidade não democrática.

Atentemos na palavra "ostensivo". O que passa a ser proibido é o uso "ostensivo" de símbolos religiosos. A lei de uma forma quase explícita indica a existência de um uso não ostensivo (chamemos-lhe "normal"), que é permitido, e um uso ostensivo que passa a ser proibido. Ora esta distinção é em si mesma um absurdo anti-democrático: faz tanto sentido falar em uso ostensivo e proibi-lo como faria sentido identificar e proibir um exercício ostensivo de liberdade de pensamento. Será que nas sociedades livres as pessoas são livres de serem religiosas mas só desde que o não sejam muito? E será que qualquer dia, em França ou em outro país, os cidadãos continuarão a ter liberdade de pensamento mas desde que não pensem demais?

Este meu argumento pode ser atacado por duas vias. Estas vias podem ser facilmente destruídas. A primeira via tem a ver com os limites às liberdades e a segunda com a noção de abuso de direito.

Primeira via: as liberdades, sobretudo as mais importantes (como a liberdade religiosa) só devem ser limitadas naquilo que fôr absolutamente necessário para que as liberdades alheias não sejam invadidas. A mera utilização de símbolos religiosos é tão invasora da liberdade dos outros como a utilização de um qualquer tipo de vestuário. Que uma rapariga se cubra totalmente com um véu prejudica-me tanto como o facto de alguém usar um blusão azul escuro. Nem me poderia prejudicar mais do que isso pelo simples facto de que em princípio nem eu nem ninguém tem ou deve ter poder sobre o modo de vestir dos outros. Por outro lado, a utilização de símbolos religiosos por uns não impede a utilização de símbolos religiosos pelos outros. A menina que se cobre com o véu, só pelo facto de que se cobre com o véu, não impede o menino de usar uma "kippa" e este, por sua vez, não consegue com a sua "kippa" impedir, por exemplo, a professora de usar um crucifixo por cima da camisa e o crucifixo também não impede que a menina use o véu... Ainda por um terceiro lado, a limitação de uma liberdade através do conceito de "uso ostensivo", além de abrir as portas para muitas limitações anti-democráticas, é simplesmente estúpida em face da mentalidade democrática: as liberdades e os direitos existem para serem exercidos em plenitude, é estúpido pretender que as liberdades e direitos sejam exercidos mas pouco, mas com cuidadinho, desde que não se veja.

Segunda via: os símbolos religiosos ou se usam ou não se usam. É muito difícil, é talvez fisicamente impossível definir uma escala de intensidade do uso e ainda mais impossível medir essa intensidade. Um crucifixo debaixo da camisa é um uso normal, fora da camisa já é ostensivo? Mais uma vez, as liberdades existem para serem gozadas na plenitude. Não sendo possível definir uma intensidade de uso, a utilização do conceito de abuso de direito para proibir o uso ostensivo de símbolos religiosos torna-se extremamente difícil. O resultado acabará por ser optar por não usar, ou seja, a consequência de se considerar a hipótese do abuso de direito leva simplesmente a que o direito, na sua totalidade, não seja exercido. Por outro lado, faz sentido falar em abuso de direito quando aquele que exerce o direito prejudica alguém. Mais uma vez, não vejo como é que qualquer um dos três usos que foram especificamente proibidos pela lei francesa ou quaisquer outros usos de símbolos religiosos possam prejudicar terceiros.


Esta lei foi aceite pelo Conselho Superior de Educação francês que engloba professores, pais e alunos. O mero facto de ela ter sido aceite por uma entidade que não faz parte do Estado não a torna democrática. Se elementos da sociedade, mesmo que amplamente representativos desta, pedirem ao Estado para que este seja menos democrático e mais totalitário, o pedido será em si mesmo anti-democrático bem como o Estado que aceda a esse pedido.

A simetria tripartida da lei (definir e proibir um uso ostensivo para cada uma das três maiores religiões) pode tornar a lei mais aceitável mas só por intermédio de um mau sentimento: eu não me importo que reduzam a minha liberdade porque a dos outros também foi reduzida. Não há consolo para a perda da minha liberdade na perda da liberdade dos outros. Por outro lado, estas probições sobre as três religiosidades, se demonstram que o Estado francês não discrimina em particular (passe o pleonasmo) nenhuma das três, demonstram também que o Estado francês, já não em particular mas em geral, é avesso às religiões, é avesso à religiosidade. O Estado que se reclamava de laicidade é de facto (e pela lei) contra a religião. Ainda por outro lado, fazer três proibições específicas poderá levantar os problemas típicos relacionados com a ideia de justiça e de igualdade: se se proibiu especificamente estes "usos ostensivos" porque também não proibiu especificamente (por exemplo) aqueles trajes espalhafatosos côr-de-laranja daqueles indivíduos que até põem uma tinta dourada no meio da testa?

Felizmente, os direitos e as liberadades já foram declarados. No século vinte e neste século, a grande ameaça à Democracia tem sido as limitações pela lei ou pela prática administrativa desses direitos e liberdades. E em geral, essas limitações ou tentativas de limitação são sempre apresentadas como tendo um objectivo de assegurar mais liberdade. A única maneira de assegurar a liberdade é limitá-la ao mínimo, é exercê-la e ter o hábito de exercê-la em plenitude (sem "vergonhas" nem tibiezas e com naturalidade) e é não concedendo e muito menos desejando que o Estado seja mais proibitivo e mais forte.

2 comentários:

  1. Excelente seu comentário!

    POr que não vemos mais no Brasil indignação contra tal Lei?

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  2. Muito clarificador! Parabéns :)

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