15 de julho de 2004

A grande música é intemporal ou a ressaca da década de 80

Chavão, admito. Por causa da história das décadas comentadas mais abaixo. Naturalmente que não há fronteiras, e os grandes nem se apercebem de tal coisa. Qual é a década de Beethoven? Ou de Gershwin? Ou do Modern Jazz Quartet?

Mais recentemente, contudo, esta arrumação dá jeito, relacionando-se com movimentos específicos da música dita popular. De forma grosseiríssima, os anos 40 são do swing, os 50 do rock, os 60 do pop, os 70 do rock progressivo e do hard rock, os 80 são o punk, o disco sound e a new age, os 90 (abençoados) são uma data de coisas ao mesmo tempo. Ainda não percebi bem onde estamos hoje, mas está a ser uma belíssima e deliciosa caldeirada.

Transversal e transcendendo estes modelos de referência, uma série de géneros. Jazz, blues, folk, funky, world music, não surpreendentemente tudo chavões em inglês que é o esperanto do nosso tempo. Igualmente desafiando classificações temos os grandes músicos. Onde meter génios absolutos como Nusrat Fateh Ali Khan, onde classificar a grandeza imensa do torturado Nick Drake?

De volta ao mainstream: do meu ponto de vista a década de 80 foi pobre em comparação com a anterior e com a que se lhe seguiu. Os anos 80 caracterizam-se pelas loas a música com angústia mas sem talento (que sempre existiu, note-se), ou seja, coisas do tipo o meu bairro é feio / estou-me a lixar para vocês todos / o mundo é uma merda / ninguém me compreende. Os paradigmas em Portugal chamam-se Xutos e Pontapés e UHF: música com rótulo de “urbana”, ou “suburbana”, com letras indigentes, ritmos básicos, música nula, decibéis em força. Noutros países o cenário é semelhante, desdobrando-se em milhares de bandas de hard rock de valor zero (Metallica, por exemplo) que apostam em encenações pirómanas e grandiloquentes para disfarçar o vazio musical.

Fora do mainstream, claro, e como disse acima, quem é bom é por vezes muito bom. Por exemplo, é na década de 80 que surge um álbum que me atrevo a classificar como uma obra-prima: Hatful of Hollow, dos Smiths, que faz aquilo a que os outros aspiram mas não conseguem – textos certeiros de inspiração e fúria existencial servidos por música superiormente escrita e executada. Isto sem desprimor para milhares de outras coisas magníficas. Entre nós, discretamente, homens como José Mário Branco e outros intemporais continuam a escrever verdadeira música nos anos 80. Os Sétima Legião (leia-se Rodrigo Leão, outro músico muito interessante) marcam a diferença com a música de treta produzida por pessoas da sua geração.

Guardemos as outras épocas para depois.

Nota final: Alguém sugere que, mais que a música em si mesma, são as circunstâncias de vida em que a ouvimos o verdadeiro ferro que a marca no nosso íntimo. Concordo parcialmente. Aqueles que sentem a música como a melhor aproximação possível à transcendência fazem intuitivamente, julgo, a distinção entre a música como moldura e como a verdadeira obra de arte que por vezes é, para nossa felicidade quase absoluta.

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