15 de junho de 2004

salvador da bahia...

Quando você for convidado pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado


o largo ladeira do pelourinho, encimado pela fundação jorge amado, famosa pelos milhares de fotos e centenas de filmes, mais as baianas de cenário que nos cercam para tirar fotos a dois reais e mais a memória da casa onde jorge amado escreveu o 'suor', naquela espécie de realismo socialista tropical único, e mais não sei quantos outros livros cheios de baianos pretos e pardos como dizia o gregório de matos, poeta também ele desta terra e também preto e pardo. os enxames de turistas tirando fotos das fileiras de casas barrocas que podiam ser da beira alta, ou da baixa, ou de outro portugal qualquer, não fossem os pretos muitos pretos e brancos que já o o não são.....


Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos


no meio da rua, um exemplar estranho de manifesto cultural ou intervenção cívica, ou lá o que seja. um homem coberto de cartazes de uma qualquer deputada federal com cara de actriz de novela, a quem pede uma casa e a quem tece os mais rasgados e laudatórios louvores, com fotos, restos de cartazes de campanha eleitoral, pedaços de lençóis escritos a spray de tinta. a cara tapada com uma máscara em rede que mais parece de esgrimista que peleia com o destino adverso


De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos
)

a bahia é uma cidade preta. quase completamente preta, orgulhosamente preta. as igrejas católicas que já foram centros de candomblé, as entradas dos prédios como sobrados onde dormiam os ex escravos que fugiram para a cidade para passarem a ser escravos outra vez, de outro modo. o deslumbramento dourado das igrejas excessivamente barrocas em resposta ao despojamento ascético dos reformistas holandeses, os orixás que são santos de outro modo (mais completos porque são humanos ao mesmo tempo, e são malandros e são manhosos e são diabos e são como nós todos...)


E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo


os olhos que olham para o largo só olham para o cenário, a patine que cobre os edifícios. tudo podia ser apenas um cenário da novela das oito que tanto bastaria para tirar as fotos, dizir que lá estive e olhei para o largo. mesmo não tendo visto nada do que está dentro do coração dolargo. dentro do coração das pessoas.


Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados


o som das percussões é o som da bahia. ouve-se nas esquinas, nas ruas. sente-se no andar das pessoas. no passo sensual das mulatas, no passo malandro dos pretos e mulatos e quase pretos. a cidade pendurada em cima do morro. em cima de todos os morros (quanto mais alto mais preto, quanto mais acima mais pobre e mais preto e mais pobre)

De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão


em baixo dos morros e na cidade este, nos alto edificios de condomínios muito fechados e muito guardados. mais altos nos últimos andares que os mais altos morros das mais altas favelas de pretos, olhando a bahia de todos os santos de todos os pretos, desafiando a gravidade e o equilíbrio físico e social, os poucos brancos da bahia fogem para o céu para estarem longe do cheiro e da cor dos pretos (mesmo que a pele deles seja escura, ficam brancos com o dinheiro e a proximidade dos céus)


Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau


os meninos do bonfim cercam a igreja do senhor, cercam os turistas. tentam cantar o hino do senhor do bonfim por meia duzia de reais, enquanto as bahianas tentam vendar as fitinhas para pedir os desejos a cada um dos três nós. não há escola, que os trocados dos turistas fazem mais falta em casa que os livros e até a camiseta tem o patrocinio de uma qualquer churrascaria que os transforma em meninos outdoors cantantes que nunca irão á escola nem nunca ouvirão falar em planos educacionais sejam eles do que forem, com excepção do que se aprende nas ruas que é onde vivem e crescem e do qual são mestres com diploma e tudo.


E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal


salvador é uma cidade marginal. contruída sobre a marginal. com gente marginal a viver marginalmente. uma imensa cultura popular que nos escapa por entre os dedos e julgamos entender lendo meia dúzia de livros sobre os cultos e os comeres. somos demasiado brancos para isso. temos os olhos claros e o cheiro das colónias nas narinas. falta-nos os cheiros dos suores que odiamos, dos temperos, das ruas, das árvores depois da chuva forte e rápida que lava tudo e tudo empurra para os rios castanhos. só vimos o postal ilustrado. falta-nos ver as pessoas. que é o que a bahia tem de rico


E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos


o aparelho de televisão ligado mostra mais uma revolta numa qualquer prisão. o espectáculo dos repórteres em directo. os familiares em choro suave. os lençóis ás janelas de grades. a inevitável chachina que irá acabar com a revolta dos presos que vivem como nas favelas dentro das celas onde estão 10 vezes mais que a lotação para que foram construídas. quantos mais morrerem mais livres vão ficar as celas, parece


Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha


as garotas de programa paseiam-se pelas mesas do 'casquinha de siri'. meninas de poucos anos e muita experiência. mulatas sensuais e bonitas que se dengam pelas mesas dos turistas que cheiram a dinheiro e a dolares e a euros para completar o salário mínimo do trabalho diário na lojinha. mulatas e pretas prenhas de ritmo dançam com velhos e menos velhos e pouco novos. brancos mais tesos que troncos de árvore em gestos que parecem de boneco articulado, convencidos que são jovens e atraentes e têm ritmo e que as meninas estão com eles não apenas pelos euros mas também por eles, pobres coitados


E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti


no meio de uma banca de literatura de cordel e discos de repentistas, bem ao lado do mercado modelo a transbordar de turistas a comprar as recordações para dizer que estiveram na bahia e pôr em cima das mesas das salas e dos televisores e nas paredes para mostrar aos amigos que foram lá e têm uma camiseta a dizer isso mesmo. enquanto escolho e peço para ouvir este e aquele disco e folheio mais uma vinheta ou um livrinho com um delicioso poema de rimas quebradas e outras mais inteiras e que contam uma história de amor ou de crime ou de lição e orgulho histórico, o velho senhor vai dizendo que este disco tem 3 sucessos e o outro 4 e aqueloutro um apenas e neste ele canta, sim, ele. o famoso paraíba da viola. ali, junto ao mercado modelo. modelo de humildade a dizer que o não-sei-qem da ladeira é o maior repentista que há, e mais aqueloutro tem não sei quantos sucessos. ele, paraíba da viola, repentista famoso entre os repentistas pede desculpa por ser quem é. por ter talento. que não senhor, é apenas um poeta e um cantador (ao-a.migo... um abraço do poeta paraiba da viola salvador 24-4-2004). conta como um chinês que estava num hotel junto ao mercado modelo lhevou uma fita e prensou o disco em taiwan e lhe enviou 24 cópias, quase todas vendidas.

trago o tesouro do afecto. trago a lição de humildade e talento.

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

(haiti, caetano veloso)

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