28 de abril de 2004

As misseses (2)

Algumas coisas que ficaram por dizer. Talvez o meu post tenha pecado por vitimização das catraias. Vou tentar esclarecer isso. Ou não.

Podem dizer-me: ah, mas ninguém obriga alguém a participar. O problema é que quem vai ao programa são em grande parte, segundo me parece, raparigas sem perspectivas, sem nome, preferencialmente feias. Ambicionam desmarcar-se do marasmo. Não digo que seja legítimo, tento não fazer aqui juízos de valor, mas é compreensível. Para jovens com pouca escolaridade, ou a escolaridade obrigatória, que vivam fora de Lisboa, Porto ou Coimbra, onde a divisão do trabalho é muito limitada – empregadas têxteis, domésticas, limpezas, cabeleireiras e pouco mais – ser miss, ou ser cantora, é um sonho que as libertaria de uma vida inteira de trabalho pouco estimulante e mal remunerado. Ser bonita representa uma oportunidade para ter um nome e o respeito dos pares. No caso dos rapazes é no futebol que se projecta essa esperança.

Evidentemente que, com tudo isto, não pretendo anular o livre arbítrio. Seguramente que podem não ir, mesmo tendo vontade. De certeza que há imensas raparigas que querem ir e não vão, justamente para não entrarem no esquema do programa. O problema é que o programa conta com as que sobram, já sabe que elas virão, pura lei das probabilidades. É delas que ele vive, mais do que das raparigas bonitas. É um programa leviano, feito de má fé. Com a tal agravante de mexer com algo de muito intimo, de muito delicado.

O que realmente incomoda é a forma premeditada, calculada, com que é feito. É uma estratégia concertada. É do programa a responsabilidade pelo formato, são eles que têm (se calhar não têm) que seguir princípios éticos – não falo de moral, como já me apontaram. Contam com as raparigas que arriscam por pouco terem a perder. Dizer que quem lá vai ou é parva e vai porque quer, ou então que até nem é mal feito que ouçam umas verdades, porque ganhar a vida pela beleza é uma estupidez é manifestamente insuficiente e o que é pior: redutor (é curioso, raramente ouço alguém criticar modelos profissionais por viverem da beleza). Isto sim é fazer juízos morais. É um caminho fácil, óbvio, mas que esconde muitas outras realidades.


PS - Outra coisa, e agora sim, moralizando: o Manuel Serrão e os outros ranhosos não têm o direito de dizer o que quer que seja das raparigas - dizem-me - por serem, eles próprios, feios. Mas nem alguém que fosse o mais belo do mundo, ou reconhecido como tal, teria legitimidade para tratar assim quem quer que seja.

PS2 – Ainda outra coisa. O Ricardo diz que é delas, das bonitas ou das que ambicionam ser bonitas, a culpa pela descriminação dos feios (o programa seria então uma espécie de vingador asséptico). Eu diria que não. Primeiro não me parece correcto falar em culpa, segundo, todos o fazemos. Todos descriminamos o feio. Os feios, ou dados como feios, não trabalham em bancos, não apresentam o telejornal, não trabalham em lojas de roupa. Todos descriminamos porque somos cúmplices. Não vivemos fora do mundo.

Não percebendo nada de psicologia, arrisco dizer que “brincar” com o feio é até um processo natural que nos permite manter níveis de orgulho saudáveis. Mas não falo só das pessoas feias. Falo da música feia, da roupa feia, de forma de falar feia, da forma feia de agir, etc e tal. O feio é uma construção, e nós não só o interiorizamos como o reproduzimos. Usar essa coisa do feio a ser abusado indiscriminadamente e à vista de todos como potencial para o lucro de uma empresa é que me parece, francamente, recriminável.

PS3 – Vou passar estes dias fora, e vou estar sem net. Se vou calar, posso não estar a consentir, hehehe.

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