30 de março de 2004

O tocador que vem de madrugada.

Não é a primeira vez. Acordo com uma toada melódica, parece o som de barcos e cordas. Então ele trabalha outro acorde. Tum, tum, tum, muito devagarinho. E retum tum, tum, outra vez. Não chega sequer a incomodar, só me faz abrir os olhos. Depois pára e retoma uns minutos depois.
às vezes tento perceber quem é o tocador anónimo. Vejo poucas luzes acesas na rua. Ao fim de semana ouço-o mais e muitas vezes deve sonhar com qualquer pedacinho de música que lhe não deixa em paz o coração e aqui vamos nós neste embalo muito grave e baixo.
A cantora lírica que dá aulas, essa abre as janelas de par em par, ouvem-se os trinados uns melhores que outros convenhamos. e solfejo, tanto solfejo. Por vezes alguns vizinhos enervam-se e colocam a aparelhagem no máximo para a abafar. Então, cada vez ela canta mais alto e ganha a guerra sonora, estralhaçando qualquer resistência.
É. a única luz que vejo acesa é num sotão tipo mansarda aqui em frente. Têm um daqueles candeeiros chineses tipo bola e livros. Nunca lá entrei, mas gosto da casa. É aconchegante.
Acho que o tocador sem identidade foi dormir. Vai sonhar talvez com outra melodia.
Mas não deixa de ser melancólico.
Quem disse que ele tinha parado? Lá recomeçou...e eu vou ver se no terceiro tum retum, que nestas coisas de música sou fraca, encontro um intervalo para re-adormecer. Porque daqui a três horas toca o despertador.
Só por isso. Por mim ficava a noite acordada a pensar onde morará este tocador que me desperta. Quem será a cara com que me devo cruzar todos os dias e não sei identificar.
Talvez um dia pergunte à porteira. Ou talvez não. Tudo assim perderia o encanto, não era?
E o mistério ainda é a melhor arma de sedução.
Abeijos e braços.

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