23 de março de 2004

A casa dos três doentes

Além dos três sabores, e das três janelas, a casa da minha avó tinha três doentes.
Acho até que era a sua característica mais marcante, pelo menos para mim. Tanto mais que, quando o último dos doentes morreu, a casa acabou.
De quem me lembro pior, é da minha bisavó Emilia. Era marreca, muito marreca. Lembro-me dela andar de um lado para o outro, completamente dobrada, praticamente num ângulo recto entre as pernas e o tronco, com a cara a pouco mais de um palmo do chão. Lembro-me que o cabelo, longo, grisalho, se lhe escapava do lenço, e varria despreocupadamente o chão até ficar cheio de todo o tipo de lixo. Lembro-me que um dia morreu, e nunca mais a vi. E a casa passou a andar mais suja...
O meu bisavô Ventura estava sempre na cama, no quarto da parte detrás... era o quarto da segunda janela. Lembro-me de lá entrar e achar tudo branco. O meu avô branco, de cabelos brancos. A cama branca, de lençóis brancos. As paredes brancas, com a janela por onde entrava uma luz tão branca, como nunca mais vi. Achava que o avô Ventura era um anjo e ninguém sabia. Um dia brigámos por causa de um balão que eu tinha levado da feira... um lindo balão vermelho que ele me quis roubar.
Morreu, tempos mais tarde, e deixei de acreditar que era um anjo.
Por último o meu avô Mario. Esse habitava na cama do quarto dos fundos, lá do outro lado da casa. Apesar de completamente paralítico pela doença de Parkinson continuava a dar ordens e gritos, que mantinham todos em sentido... em medo... sei lá. Eu sim, confesso, tinha medo de lá ir, medo de dar o beijo ritual ao avô, medo do cheiro e do frio da morte.
Um dia também morreu... e as pessoas ficaram livres, partiram e a casa fechou!

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