17 de novembro de 2003

Uma carta de 1910

Confesso que não sou grande admirador de Amadeo de Souza-Cardozo.
Provavelmente é um defeito meu, mas que se há-de fazer...
No entanto, ao dar por aí umas voltas, encontrei uma carta dele para o tio Francisco, que achei muito interessante. Cá vai:

"Meu querido tio
Estranhei a sua carta pela maneira como me compreendeu, ou eu mal me exprimi. A minha vida não é nada de contemplação, ao contrário tudo o que há de mais real, mais de facto. Nem eu sou um temperamento contemplativo, essa idade passou quando eu ia pelo Coliseu ouvir a Tosca. Não, isso permite-se numa outra idade, e se acaso não passa, é um sinal incontestável de inferioridade. Agora a minha idade é outra - resolver problemas e marchar, subir em cultura física, e espiritual e artística ao mais alto degrau, aproveitar desta vida o mais possível, pois que tudo é passageiro, e o Céu outrora prometido já não seduz os homens modernos. Em Arte estamos em absoluto desacordo. De resto, estou-o tambem com os amigos compatriotas que marcham numa rotina atrazada. Arte é bem outra coisa que quasi toda a gente pensa, é bem mais que muita gente julga. Tudo quanto para aqui se faz é mediocre, aparte raras raras coisas. Porque eu não gosto de Rodin ou Ticiano, todos me dizem que sigo um mau caminho. E porquê? Se cada um se fiasse no caminho que nos aconselham nada de mais se fazia, pois que eles, os outros, só sabem indicar-nos as suas proprias pisadas. Há gente que chama ao meu estado uma pretensão para sair for a do vulgar - que pensem o que queiram, indiferente me é - eu tenho as minhas razões e bastam. Eu sei o que agrada em geral - eu na generalidade desagrado. Até certo ponto não é menos lisongeiro.
A técnica de que fala é coisa em que nem penso. Fixar aí a ideia é parar muito aquem do fim. Qualquer aprende. Ninguém deixa de fazer uma obra de arte intensa por falta de técnica, mas por falta de outra coisa que se chama temperamento.
Enfim, para mim os tais artistas de técnica acabaram.
Não é precisamente uma exposição que vou fazer. São apenas alguns desenhos e alguns cartões que fiz aí que colocarei no meu atelier com o fim de serem visitados em intimidade e ver se vendo alguns. Tudo isto são coisas a que não ligo nenhuma sorte de importância e talvez as únicas que poderei vender. As coisas que aí fiz serão más, há porém quatro ou cinco entre elas melhores que tudo quanto fiz até então. Eu não me iludo, sei separar-me de mim para julgar. O Vianna creio que partiu para não sei onde. As coisas que expôs nessa tal Academia, a meu ver, particularmente, não são absolutamente nada. Agora outra coisa: as minhas ideias não tem relação nenhuma com a nossa estima, e espero que me julgue sempre bom amigo e grato a toda a afeição e favores que me concede. Dê um abraço à Avosinha e outro para si do seu sobrinho e grande amigo

Amadeo"

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