24 de novembro de 2003

Para o Orlando

Raras vezes terá havido na música portuguesa uma conjugação de artistas como os Heróis do Mar. Separadamente, os cinco membros transformaram-se em peças-chave do meio musical português; em conjunto, foram um dos grupos mais importantes e inovadores que o rock português viu nascer.
Quando se formaram, em 1981, já todos tinham alguma experiência musical. O baixista Pedro Ayres Magalhães e o guitarrista Paulo Pedro Gonçalves haviam sido fundadores dos Faíscas, o primeiro grupo punk português, que existira entre 1977 e 1979 sem nunca gravar, mas influenciara nomes como os Xutos & Pontapés. Quando os Faíscas desapareceram, Magalhães e Gonçalves formaram os Corpo Diplomático com o teclista Carlos Maria Trindade. Tozé Almeida, por seu lado, fora baterista dos Tantra desde o início daquele grupo. O cantor Rui Pregai da Cunha, finalmente, tinha um projecto experimental chamado Colagem Urbana.
O que reuniu estes músicos em Março de 1981 foi a ideia de Magalhães e Gonçalves de formarem um grupo musical que reflectisse de algum modo Portugal, a sua história e a sua cultura. A escolha do nome Heróis do Mar, retirado ao hino nacional, não foi casual, tal como também não o fora a opção por um visual futurista-militarista e por letras simples que projectavam um imaginário cultural nostálgico por um Portugal mítico, colonial e classicista.
Quando o álbum de estreia, Heróis do Mar, é lançado no Outono de 1981, a polémica estala à volta do grupo, que é acusado de fascista e neonazi, tal como acontecera poucos meses antes em Inglaterra com os Span-dau Ballet por razões muito semelhantes, relacionadas com o imaginário utilizado por ambos os grupos que tocava em pontos sensíveis da memória colectiva ocidental. O 25 de Abril estava ainda demasiado próximo para que canções como Saudade ou Brava Dança dos Heróis, inspiradas ao mesmo tempo na música electrónica futurista proveniente de Inglaterra e numa atitude de reciclagem estética, pudessem ser recebidas pacificamente.
O tempo encarregou-se de eliminar a polémica, deixando apenas a música que foi finalmente reconhecida apenas pela sua qualidade. Nem foi preciso muito tempo: no Verão de 1982, Amor, uma canção de dança que não fazia parte do álbum, torna-se no maior êxito de sempre da música popular portuguesa desde Eu Tenho Dois Amores, de Marco Paulo, levando à criação do Disco de Platina, que até então não existia em Portugal.
Mas o sucesso não será repetido pelos discos seguintes, onde o visual era já menos ousado e se inspirava mais nos cabedais punk ou nos tecidos de pescadores.
Mãe, o álbum de 1983, é bem recebido pela crítica mas não pelo público, e o mini-LP de 1984, O Rapto (que inclui o êxito de rádio Só Gosto de Ti) passa despercebido.
Apenas dois singles mantêm a chama acesa: Paixão (1983) A Alegria (1985), obtêm sucessos discretos na rádio, sem repetirem a popularidade de^mor.
O consenso junto da crítica é que desde o primeiro álbum e/4morque os Heróis do Mar não conseguem concretizar todas as potencialidades criativas do colectivo.
Entretanto, os músicos começavam a desmultiplicar-se em projectos a solo. Paulo Pedro Gonçalves e Carlos Maria Trindade gravam discos em nome próprio, Pedro Ayres Magalhães dirige a editora Fundação Atlântica, onde produz discos de Anamar e Delfins, e escreve e produz o álbum de Ne Ladeiras Sonho Azul.
Os cinco Heróis estão também envolvidos no último disco de António Variações Dar e Receber, onde todos tocam e Magalhães e Trindade igualmente assinam a produção e os arranjos.
1985 traz um período de crise: coincidindo com a edição do singie Alegria, anuncia-se a possível saída (não concretizada) do cantor Rui Pregai da Cunha, e o grupo muda de editora. A saída da crise dá-se durante uma viagem a Macau: dos dez dias que previam ficar no território para dar concertos, ficam um mês e regressam a Portugal rejuvenescidos e renovados.
Dessa viagem nasce, depois de quatro meses passados em estúdio, o álbum Macau, que, publicado no final de 1986, relança a carreira dos Heróis do Mar com o seu maior êxito crítico de sempre.
Mas os cinco músicos estavam claramente cada vez mais afastados: Carlos Maria Trindade é muito requisitado como produtor, trabalhando com os Rádio Macau e Delfins, Tozé Almeida forma uma produtora televisiva, Pedro Ayres Magalhães lança os Madre-deus com Rodrigo Leão dos Sétima Legião. Depois de um último álbum lançado £m 1988 e intitulado simplesmente Heróis do Mar, gravado já sem Almeida, o grupo desfaz-se em 1990, na sequência do abandono definitivo de Trindade.
Mas se os Heróis do Mar encerram actividades em 1990, deixando cinco discos de valor e popularidade diferentes, o mesmo já não se pode dizer dos seus componentes. Só Tozé Almeida não se manteve ligado directamente à música, dedicando-se à realização de programas televisivos, publicidade e alguns telediscos. Pedro Ayres Magalhães pôde dedicar-se a tempo inteiro aos Madredeus, concebendo igualmente o projecto Resistência, fazendo durante algum tempo parte dos Delfins e ajudando na criação da União Lisboa, empresa de agenciamento e manage-mentde artistas, que apadrinhou os Delfins, Santos & Pecadores e Pólo Norte entre muitos outros. Rui Pregai da Cunha e Paulo Pedro Gonçalves formarão, sem sucesso, um dos primeiros grupos nacionais pensados internacionalmente, os LX-90, antes de se radicarem em Londres com os Kick Out The Jams; Cunha retirar-se-á eventualmente da música, e Gonçalves seguirá para os Ovelha Negra, um projecto de "fado urbano". Carlos Maria Trindade foi executivo numa editora multinacional e gravou dois álbuns em nome próprio antes de se juntar a Magalhães como teclista dos Madredeus após a saída de Rodrigo Leão. Certo é que, mesmo depois da dissolução do projecto, os Heróis do Mar continuaram a ser uma força importante na moderna música nacional, apostada em elevar a fasquia da qualidade sem perder de vista o público nacional a que se dirigia.

Sem comentários:

Enviar um comentário