13 de dezembro de 2009

O NATAL DO CLANDESTINO

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“ O Natal do Clandestino “ é um belíssimo conto de Natal de José Rodrigues Migueis.
Poucos, como ele, sentiram na pele o que foi viver fora do seu país.
 Um exílio voluntariamente assumido, é certo, mas imposto pelos entraves
que o salazarismo lhe colocou.
O viver amargo dos dias, principalmente os de Natal.
O cenário deste conto é Baltimore.
Escreve Migueís:
“Há cidades que parecem viver na intimidade dos dramas do mar;
onde este está sempre presente, em convívio com os homens”
Era véspera de Natal e um navio “um desses navios que podiam ter
 inspirado um conto triste a Joseph Conrad ou Pierre Mac Orlan”,
atracou pela manhã num cais de Balrimore. A bordo viajara um passageiro
que não constava dos “livros de navegação”, que entrara a bordo
com a cumplicidade de dois tripulantes.
Terminada a descarga do navio, o “silêncio escorreu sobre os molhes e hangares”.
O passageiro clandestino aguardou a altura de sair do canto do porão para o cais.
“Há quantos anos ele sonhava com a América! Vinha em busca dela como, quatrocentos
 anos antes, e mais, os seus antepassados, mais felizes, tinham vindo em demanda
 da Terra Firme, do Eldorado e de Xipango”.
Já no cais surge-lhe a figura de um polícia, um hálito quente, de tabaco e de whisky,
uma manápula forte a cair sobre os fracos ombros. Ficaram frente a frente.
“Que pode um homem dizer em tais circunstâncias? Tinham-lhe recomendado:
 “Haja o que houver”, não abra bico, Faça-se de trouxa.”
O polícia disse qualquer coisa que ele não conseguiu entender mas
colocou-lhe a mão nas costas e empurrando-o gritou
“- Run!
O homem não precisou de entender e correu, correu sem saber
 aonde ia nem o que pensava, se o agente lhe ia dar um tiro pelas costas
como a um ladrão das docas que desobedece à ordem de “Alto”, ou se
ealmente o mandava embora, livre, sem o prender nem obrigá-lo a
 voltar para bordo. Correu às cegas, a rir e a chorar, mastigando palavras
sem tom nem som, e tropeçando a cada passo em obstáculos, esbarrando
em paredes, em caixotes, em fardos, em cordames, em máquinas, confuso
 e perdido, incapaz de encontrar a saída daquele labirinto.
A voz do polícia atirou-lhe a distância no escuro:
- Merry Christmas!
O clandestino deteve-se, compreendendo vagamente, e só nesse instante
se lembrou de que era noite de Natal. Então, com a garganta estrangulada,
pulou uma vedação de rede, transpôs umas calhas ferroviárias, e deitou a correr
em campo aberto.
De longe, o clarão agora mais vivo da cidade guiava-lhe os passos, como o
reflexo de misteriosa estrela oculta ou de lareira acesa, chamando-o à consoada.”

Este livrinho foi composto para ser vendido pela Estúdios Cor no Natal de 1957.
em capa e ilustrações de Bernardo Marques.
Todos os anos a editora Estudios Cor” escolhia um autor para escrever um conto de Natal.
Mais tarde José Rodrigues Migueis há-de inclui-lo, mas com o título de
“O Viajante Clandestino, no livro de contos “Gente de Terceira Classe”,
 publicado em Novembro de 1962, também pela “Estúdios Cor”.

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3 comentários:

Luísa disse...

No meu sétimo ano tive o meu primeiro contacto com este Senhor. O "Arroz do céu" vinha na integra no meu livro de português. Fiquei muito impressionada com aquela família que comia o arroz que alguém desperdiçava.
O tempo afastou-me dele, para me voltar aproximar no penúltimo ano do meu curso. Li mais textos dele e contiuei a impressionar-me com o trabalho dele. Só nunca pensei que viesse a compreender as palavras dele pela experiência na minha própria pele...
Obrigada por o ter trazido para aqui desta forma.

teresa disse...

Rodrigues Miguéis é único. Confesso não conhecer devidamente a sua obra, à excepção de alguns textos. Irei certamente ler tudo o que puder (e vamos conhecendo melhor o seu trabalho através de divulgações como a deste post). Quanto ao 'Arroz do Céu' aqui referido pela Luísa, será sem dúvida um texto marcante, quer pela conjugação genial das palavras (haverá expressão mais bonita do que 'voragem empolgante das grandes cidades'?), quer pela situação criativa que atravessa o conto... quem se lembraria de que 'o céu do limpa-vias é o chão que outros pisam?'...
Conheci esta narrativa como professora e não como aluna. O livro, com gravuras bem conseguidas, já aqui foi também referido. Deixo o link:
http://diasquevoam.blogspot.com/2009/02/tesouros-cair-no-subway.html

Unknown disse...

O inicio de uma nova vida!
Uma historia semelhante, foi vivida pelo meu pai. Corriam os anos quarenta, foi tambem numa das docas do porto de Baltimore, que o meu pai desenbarcou para o desconhecido. Foi o principio do sonho ,de muito trabalho e sacrificio, mas por fim de realizacao.

Que ainda hoje, felizmente, esse esforco se repercute em nossas vidas. E recordamos com emocao o principio da sua aventura.

Muito obrigada, por trazer este excerto de " O Natal do clandestino"