18 de novembro de 2014

Poesia não morre

Frame do documentário "Só dez por cento é mentira"
A passagem de Manoel de Barros não foi uma surpresa pra mim. Havia alguns meses, o poeta anunciava estar cansado dessa vida. Morreu, como dizem aqui no Brasil "como um passarinho". No meu entendimento, passarinhou. Como disse o amigo Bosco Martins, na edição do Correio Braziliense que homenageou o poeta, "a morte, a gente tem que ter serenidade para aceitá-la como uma decorrência do nascer".

Mas toda morte nos faz refletir e a do Manoel, minha fonte de inspiração eterna, me fez retornar ao passado. Eu era um jovem repórter de TV no início da década de 90, do Século passado. E fui trabalhar em Campo Grande, terra onde o poeta viveu a maior parte da vida.


Manoel e sua escrita
Um dia, recebi um desafio, foi em 1991: Entrevistar o poeta Manoel de Barros para a primeira revista científica da UNIDERP - Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal. Obter dele algo que ligasse a poesia à pesquisa e ao trabalho que a Universidade pretendia fazer no Pantanal. O convite veio da professora Yara Penteado e do professor Paulo Cabral. A Revista se chamaria ONATI. Topei na hora. 

Fiz a lista de perguntas e mandei pro Manoel, que já à época preferia as correspondências às entrevistas presenciais. 23 anos depois, relendo o que ele escreveu, constato - poesia não morre. Por isso, tomo a liberdade de recuperar o conteúdo dessa nossa “conversa”, resgatando um pouco da poesia viva de Manoel de Barros, que eu tenho certeza, não nos deixará.

Frame do documentário "Só dez por cento é mentira".

O peso das contradições do Brasil lhe pesa também sobre a poesia?
Manoel de Barros - Não pesam as contradições do Brasil porque, na verdade a gente, eu, tenho muito mais contradições do que o Brasil. Eu ganho do Brasil de 10 a zero. Acho que a gente é poeta por isso mesmo: que precisa resolver as suas contradições. E porque não as resolve, graças a Deus. Eu não resolvo essa briga dentro de mim senão com palavras. E há uma figura de estilo que concilia muito a gente por dentro. Se trata da antítese. A gente produz uma frase antitética e fica feliz. Parece que a frase nos harmoniza. Assim como esta, por exemplo: Só as coisas rasteiras me celestam.


Na revolução da informação que vivemos neste fim de Século (a conversa foi no fim do Século XX), a composição da poesia também se altera?
Manoel de Barros - Sabe, Maranhão, eu tenho um mundinho bem reduzido. Tentei algum tempo alargar esse mundo lendo os filósofos, pensadores, romancistas, poetas de todos os lugares e tempos. Vi pinturas, esculturas, vitrais, pessoas, países, ruinas, aldeias, costumes, ternuras, desgraças. Andei por estradas modernas e por trilheiros. E vi, como diz o Eclesiastes, que tudo é vaidade e vento. Isto seja: que tudo é igual e vai pro pó. Não me impressiono com as tecnologias. Pra mim, elas acrescentam algumas palavras novas, que ainda não aceito em meus poemas. Não aceito porque essas palavras ainda não entraram no meu sangue. Componho como compunha: a lápis e usando um velho dicionário português dos eremitas calçados de 1870. E as minhas percepções sensoriais.


A Aldeia Global nos permite estar hoje na África do Sul ou no Pantanal do Nabileque com uma pequena diferença de fração de segundos. Há risco nessa evolução? Voltar os olhos para o regional significa resguardar a identidade pantaneira?
Manoel de Barros - Não há como evitar as aldeias globais e seus efeitos. Elas invadem e destemperam quase tudo. Mas o pantanal em seu todo, em sua ossatura geológica está resgaurdado. Ou quase. O fato de ser uma região de enchentes periódicas, isso preserva um pouco o pantanal. Ninguém se estabelece com indústrias ou supermercados no pantanal. Porque em seis meses as águas lhes comem pelas beiradas. E tudo bóia. E tudo nada. Aquilo é celeiro de bichos e aves e não de cofres bancários. Com a paz dos bichos vive a paz do homem pantaneiro. E viverá enquanto a natureza não modificar a sua ossatura geológica.


Alguma vez lhe passou pela cabeça criar um "dicionário da natureza"?
Manoel de Barros - Você pode não acreditar, mas eu não me emociono com a natureza como ela é. Suas águas, seus bichos, sua vegetação. Até tenho um certo fastio da natureza. Igual Macbeth falava: Tenho um certo fastio do sol. Talvez a gente queira fazer um sol verde, um homem que voe como as noivas de Chagal, um cavalo azul e de asas. É evidente que eu, tendo sido criado no pantanal, tenha em mim um lastro de brejos e de conchas. Tenho um sentido de abandono em mim. Um sentimento de lonjuras, de distâncias, de lugares sem dono. Venho daqueles tempos em que o pantanal era o ermo. Fui criado naqueles ermos. Por isso tenho em mim um sentimento de abandono. Na minha meninice chegavam apenas carros de bois, de três em três meses no lugar em que morávamos. De forma que essa angústia de estar em lugar distante e perdido, me acompanha até hoje. Não me seduz ver as paisagens do pantanal porque elas estão dentro de mim. O que preciso é transfazê-las.

Frame do documentário "Só dez por cento é mentira". 
Você parece ter feito uma opção por manter-se à margem. Do sistema, da mediocridade, da excentricidade. Você se sente violentado nesses tempos de invasão e de quebra de privacidade?
Manoel de Barros - Existe uma lenda de que eu tenha feito opção para viver à margem. E às margens. Mas, na verdade, eu nunca fiz essa opção e a coisa é lenda mesmo. O que eu sou, sem dúvida, é um tímido incurável. Sofro para atravessar um salão cheio de gente. Sofro em solenidades. Ando sobre pregos se tenho que conversar com senhores conspícuos. Até para entrar em salão de barbeiro, se o salão está cheio de gente, eu sofro. Escolho sempre aqueles velhos salõezinhos de uma só cadeira. Aí fico amigo do barbeiro e nos anedotamos. Daí, por não gostar de sofrer, fui me afastando dos convescotes, das vernissages, dos inauguramentos, dos sodalícios. Prefiro os lupanares do que os sodalícios. Vivo bem nas tocas. A gente acaba descobrindo que no fechado o imaginário voa mais longe.


Mesmo sem sair do Mato Grosso do Sul, sem cortar o contato com a sua terra, o seu olhar tem sabor do universal. Que energia é essa que te alimenta a poesia?
Manoel de Barros - Os olhos enxergam melhor as coisas do nosso pequeno mundo particular. Aqui ou em Paris os quintais têm as mesmas coisas: folhas secas, cacos de vidro, formigas, bosta de rato, baratas cascudas. Passei algumas horas no quintal de Rodin. Eu estava curioso para ver se os passarinhos de lá tinham duas pernas também, como os daqui. Saí confiante que tinham. Então acertei as pequenas coisas que meus olhos viam na minha terra, na minha cidade, no meu terreiro - eram quase que as mesmas que eu vira no quintal de Rodin. E sei bem que só um milagre estético pode tornar tudo isso universal. O que faz do particular uma coisa universal é o tratamento estético que possamos dar a esse particular de cada um de nós.


Gilberto Gil diz em uma de suas canções que "no sonho do poeta nada falta". Com quê o poeta sonha?
Manoel de Barros - Eu fantasio completo. Eu fantasio mulheres, viagens , vulva, pevide, inocências. Queria ter agora um olho de criança para ver o mundo pela primeira vez. (Meu olho está tão gasto!) Eu ía dar nome às coisas. Cobra eu chamaria de flor que anda. Nuvem eu chamaria de sol, etc. etc. Eu daria movimento às pedras. Faria árvore pensar. Tudo o que eu tocasse teria um canto, uma cor, um amor. A solidão teria que existir para que a alma funcionasse e se abrisse em sonhos. Eu sonho tudo. Eu queria saber misturar melhor as palavras a ponto que eu fosse mais poeta.



Ao final, bem ao seu estilo, o poeta me mandou um recado, em que aceita - carinhoso - o convite que faço para tomar "uns goles de cachaça" que ele não dispensava. A certa altura (veja a transcrição do conteúdo, logo a seguir) diz esperar que eu não me decepcione com o conteúdo das respostas. Imaginem, logo eu! 

"Maranhão Viegas, prezado jornalista.
A moça que trouxe as suas perguntas me disse que você teria pressa. 
Não relaxei entretanto, por isso. Fiz o que posso e o que sei. Talvez
se houvesse prazo maior as linhas aumentassem. Espero que você não se decepcione. 
Quanto aos goles em algum boteco do mundo, vamos marcar. 
Grande abraço. O amigo, Manoel de Barros. 

PS. Acho que misturei as perguntas, a ordem delas. M."

O bilhete aí em cima guardo com o carinho de quem realizou um sonho. 
O sonho de ter tocado o poeta e sua poesia.

9 de novembro de 2014

Amália

Original a lua-de-mel de Amália, na Ericeira em 1961...Acampada com a família e motorista e empregado.

8 de novembro de 2014

Teresa Torga

José Afonso fez dela uma canção. A história de uma mulher desesperada e triste que se despe na via pública em 1975. Dela encontrei já registo na revista Plateia e hoje volto a encontrá-la. Pergunto-me, o que lhe terá acontecido?
Mais aqui: "No DL, R.R. (Rogério Rodrigues) conta a história de uma mulher " de que não se conhecia o nome" , que ontem, às quatro da tarde fazia streap-tease enquanto dançava, ao centro do cruzamento da Avenida Miguel Bombarda com a Avenida 5 de Outubro.
"Visivelmente surpreendidos, alguns espectadores da cena, invulgar em ruas de Lisboa, dirigiram-se para a mulher no intento de a proteger das vistas de quem passava e de quem parava, persuadi-la a vestir-se e abandonar o local. No meio da confusão, surge o repórter António Capela, que começa a disparar. Os populares, indignados com o que consideram 'uma baixeza moral', investem sobre ele, insultam-no, empurram-no, agridem-no e só a intervenção do proprietário da drogaria vizinha impede que não lhe partam a máquina (...) Entretanto a mulher tinha sido levada para o limiar de um prédio com porteita à porta. Já vestida, olhava apática para as pessoas que a rodeavam. Dizem-me que se chamava Maria Teresa.'Não sou Maria. Não sou Teresa. Tenho muitos nomes'.Tinha os lábios encortiçados e recusava o copo de água que lhe ofereciam".
"Quem se despiu na via pública, ontem, às 4 da tarde?", interroga-se o jornalista, que passa a contar o percurso de vida, entretanto averiguado, de uma mulher de 41 anos, divorciada, sucessivamente actriz de revista, emigrante no Brasil, cantora de fado e que agora, no intervalo de tratamento no Júlio de Matos, "mudava discos no pick-up" de uma boite de Benfica.
Usava o nome de Teresa Torga " porque há um escritor que se chama assim" e ela gostava muito de ler, conta uma vizinha. A última vez que o repórter a viu seguia ela num carro da polícia para a esquadra do Matadouro.
in http://weber.blogs.sapo.pt/
No centro da Avenida
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua
(...) Dizem que se chama Teresa
Seu nome é Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que o diga António Capela
T'resa Torga, T'resa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha.
José Afonso, Teresa Torga
in álbum "Com as minhas tamanquinhas", 1976